UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E INSTITUCIONAL ANDREA FRICKE DUARTE LIVRE PARA FRACASSAR: UM ENCONTRO COM A TRILOGIA ERÓTICA DE HILDA HILST OSCILAÇÕES DA GRAVIDADE Porto Alegre, 2015 2 ANDREA FRICKE DUARTE LIVRE PARA FRACASSAR: UM ENCONTRO COM A TRILOGIA ERÓTICA DE HILDA HILST OSCILAÇÕES DA GRAVIDADE Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional como requisito parcial para obtenção do título de doutora em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientador: Prof. Dr. Edson Luiz André de Sousa Porto Alegre 2015 3 Andrea Fricke Duarte LIVRE PARA FRACASSAR: UM ENCONTRO COM A TRILOGIA ERÓTICA DE HILDA HILST OSCILAÇÕES DA GRAVIDADE BANCA EXAMINADORA Orientador: Prof. Dr. Edson Luiz André de Sousa – UFRGS Prof.ͣ Drͣ Simone Moschen – PPG Psicologia Social e Institucional – UFRGS 4 Prof.ͣ Dr.ͣ Márcia Ivana de Lima e Silva – PPG Letras - UFRGS Prof.ͣ Dr. Manoel Ricardo de Lima– PPG Memória Social - UNIRIO 5 Gostaria de agradecer a todos aqueles que participaram direta e indiretamente da escrita desta tese. Uma escrita é feita de muitas pessoas, de muitos encontros, e como todo encontro, gerador de muitas alegrias e muitas angústias. Gostaria de agradecer primeiramente ao Edson Sousa, meu orientador, não só pela parceria e pela confiança, mas pela sua leveza, pela sua generosidade de compartilhar ideias, e principalmente, pela sua escuta, e pelas suas esperas, acompanhadas sempre de seu bom-humor e de palavras amigas, nos momentos necessários. Gostaria de agradecer a Jacques Lenhaardt, meu orientador externo, pela sua escuta tão dedicada e a sua atenção participante, que se deixou tocar por Hilda Hilst e de maneira muito generosa, ofereceu a minha pesquisa seu olhar sobre ela. Aos colegas do Laboratório de Pesquisa em Artes e Psicanálise, o LAPPAP, pelos momentos de troca e de compartilhamento, fundamentais em tempos em que escutar o outro se tornou tão raro. À prof.ª Simone Moschen, pela sua transmissão, a cada vez e ao seu olhar atento. À prof.ª Marcia Ivana de Lima e Silva, por aceitar mais uma vez fazer a leitura tão especial deste percurso. À Manoel Ricardo de Lima, por essa palavra solta no mundo, e que não cabe. . Ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UFRGS, pela excelente qualidade da formação. À CAPES, pelo indispensável auxílio através da bolsa de pesquisa; A todos da minha família. À Isabela, pelo seu encanto. Pelo seu amor, sua raridade. Ao meu pai e a Leandra, pelo apoio, imenso. Às minhas irmãs-sereias, Sabrina, Júlia e Laura por estarem aqui comigo. 6 À minha mãe, pelas artistagens. À minha vó Eloisa, pelo tanto, que não cabem nas palavras. A tia Fátima e ao Tio Lu, por tantas parcerias e cuidados. Agradecer em especial ao meu tio, Antônio Fernando, pela consultoria em Física e Astronomia, para a realização de meus estudos da gravidade na tese, e por ter me ensinado quando eu ainda era uma menina, a encontrar as constelações no céu: as plêiades, a constelação de touro e as Nuvens de Magalhães. E com seu telescópio, me mostrar às crateras da lua. Por compartilhar seu amor às estrelas, obrigada. Ao Tom pela amizade, por torcemos pela felicidade um do outro. Aos colegas de mestrado e doutorado e amigos de outras caminhadas, pela alegria das parcerias. A Filipe Sabella pelo diálogo fecundo de pensamento, numa hora tão grave de fim de tese. À Bita, e as saudades. À Ana, Cris, Enzo e Pierre, pelo sonho compartilhado. A Zuleica e Guilherme e sua família, por esse amor ruivo, que tanto preencheu minha vida e a da Isa de significados. A Betty, Stefani, Natty e Jaime, por essa família emprestada, sempre bem perto do coração. A Luciana e Iris, pela ilha de calor que se formou em Paris, e pelas saudades imensas. A TODOS amigos do Cafezóide, pelos braços sempre abertos e calorosos, pelos encontros. Aos vaga-lumes ardentes que por vezes iluminam meus escuros. À Camila Backes e Janaína Bechler pelo punhado de flores que trazem consigo. E à Hilda Hilst, pela sua palavra. 7 RESUMO A tese propõe um encontro da trilogia pornográfica da escritora brasileira Hilda Hilst com o pesquisador, e decidiu-se pela forma do ensaio. A trilogia, composta pelos livros O Caderno Rosa de Lori Lamby (1990), Cartas de um Sedutor (1991) e Contos d’escárnio/Textos Grotescos (1992) apresentam uma mudança na trajetória da escritora, que anuncia na passagem para a escrita pornográfica, uma desistência da “literatura séria” e, por fim, entre os anos 1998 - 2004, a escritora assume um novo discurso: a desistência da literatura, quando declara publicamente: “não tenho mais nada a dizer”. Para investigar esses períodos, foi feita uma imersão nos arquivos pessoais da escritora, além da leitura das obras, seguindo a proposição de Didi-Huberman sobre as imagens: o regime da imagem e da imaginação é um local de luta política, principalmente aquelas imagens que portam memórias e têm um poder de transmitir algo de um tempo que se passou. O confronto de diferentes temporalidades se dá como uma estratégia de análise do material de arquivo, uma vez que a hipótese da tese é que, quando Hilda Hilst se “sente livre para fracassar”, acontece junto uma mudança de formato no uso do humor em sua literatura. Através de ferramentas teóricas do campo da psicanálise, da arte, da literatura e da crítica, a pesquisa investiga as noções de erótico, pornográfico e obsceno que compõe o universo da escritora, junto dos seguintes eixos de análise: problematização de imagem, escrita, arquivo, sobrevivência e do realismo grotesco como estratégia para o risível. O método utilizado foi o ensaio, com o objetivo de desenvolver uma pesquisa poética no processo de trabalho. A escrita hilstiana desse período tem por objetivo acordar o leitor com um soco, e aqui, acabou por acertá-lo em cheio. Desse choque se operou uma queda no espaço e uma desestabilização. Diante desta literatura, a tese se constituiu como um percurso de investigação da queda, propondo “Os estudos da gravidade - oscilações entre o peso e a leveza”, como resultados da pesquisa poética. Palavras-chave: Hilda Hilst, obsceno, gravidade, imagens sobreviventes; 8 ABSTRACT The thesis proposes a meeting between the Hilda Hilst’s pornography trilogy and the researcher in the essay form. The trilogy is composed by the books “The Pink Book of Lori Lamby (1990)”, “Letters of a seductive (1991)” e “Mockery Short Story/Grotesque Writing (1992)” presenting a change in the author’s trajectory, which is announced in the route to the pornography writings, a called forsake of the “serious literature”, and lastly, between the years 1998 – 2004, the writer assumes a new speech; the forsake of literature, when she declares publicly: “I have nothing else to say”. To investigate these periods of time, an immersion work was made in the personal archives of the author, besides the reading of the author’s works, followed by the proposition of DidiHuberman about the images: the image system of imagination is a place of political fight mainly in those images that carry memories and have the strength to transmit something of a lost time. The confrontation of different times is an analyses strategy of the archives material, once the thesis hypothesis is that when Hilda Hilst “feels free to fail” occurs together a change of the format in the use of humor in her literature. By the theoretical tools of the psychoanalyses field, the art, the literature and the critic, the research investigates the concepts of erotic, pornography and obscene, that composes the authors universe, along with the following analysis axes: questioning of image, writing, archive, survival and the grotesque realism as a strategy for the laughable. The method was the essay as an objective to develop a poetic research in the work progress. The hilstian writing of this period has as an objective wake up the reader with a punch, and here in this work has just hit her (the author Hilda) in the face. From this shock, a falling into the space and a destabilization operated. Thereby having in mind this literature, the thesis was built as a route in the investigation of fall, proposing The studies of gravity - fluctuation between the weight and lightness, as the results of this poetic research. Keywords: Hilda Hilst, obscene, gravity,images,survivors; 9 ÍNDICE DE FIGURAS Capa. Diário de Paris I. Andrea Fricke Duarte, 2014. Figura 1. HH_38. Andrea Fricke Duarte, 2013. Figura 2. HH_39. Andrea Fricke Duarte, 2013. Figura 3. HH_41. Andrea Fricke Duarte, 2013. Figura 4. Anotações Torturas no Paraguai I. Andrea Fricke Duarte, 2013. Figura 5. Anotações Torturas no Paraguai II. Andrea Fricke Duarte, 2013. Figura 6. Desenhos 3 – Arquivos. Andrea Fricke Duarte, 2013. Figura 7. Fall I. Bas Jan Ader, 1970. Figura 8. Fall I. Bas Jan Ader, 1970. Figura 9. Fall II. Bas Jan Ader, 1970. Figura 10. Fall II. Bas Jan Ader, 1970. Figura 11. Broken Fall (orgânic) Bas Jan Ader, 1971. Figura 12. Broken Fall (orgânic) Bas Jan Ader, 1971. Figura 13. Broken Fall (geometric), Bas Jan Ader, 1971. Figura 14. Broken Fall (geometric), Bas Jan Ader, 1971. Figura 15. NightFall. Bas Jan Ader 1971. Figura 16. NightFall. Bas Jan Ader 1971. . Figura 17. NightFall. Bas Jan Ader 1971. Linha. 18. NightFall. Bas Jan Ader 1971. Figura 19. In search of the miraculous. Bas Jan Ader, 1975. Figura 20. In search of the miraculous. Bas Jan Ader, 1975. Figura 21. HH_37. Andrea Fricke Duarte, 2013. Figura. 22. Peso. Andrea Fricke Duarte, 2014. Figura 23. Leveza. Andrea Fricke Duarte, 2014. Figura 24. Leveza sobre o peso. Andrea Fricke Duarte, 2014. Figura 25. Para Ana Cristina César. Andrea Fricke Duarte, 2012. Figura 26. Cildo – Do + e do – leve. Andrea Fricke Duarte, 2012. Figura 27. HH_13 – Imagem do arquivo. Andrea Fricke Duarte. 2013. Figura 28. HH_18 – Imagem do arquivo. Andrea Fricke Duarte. 2013. Figura 29. Diário de Paris III. Andrea Fricke Duarte, 2014. Figura 30. Diário de Paris IV. Andrea Fricke Duarte, 2014. Figura 31. Diário de Paris V. Andrea Fricke Duarte, 2014. Figura 32. Diário de Paris VI. Andrea Fricke Duarte, 2014. Figura 33. Diário de Paris VII. Andrea Fricke Duarte, 2014. Figura 34. Diário de Paris VIII. Andrea Fricke Duarte, 2014. Figura 35. Diário de Paris IX. Andrea Fricke Duarte, 2014. Figura 36. HH_40. Andrea Fricke Duarte, 2013. Figura 37. HH_32. Andrea Fricke Duarte 11 Figura 38. HH_11 – Imagem do arquivo. Andrea Fricke Duarte. 2013. Figura 39. HH_ 09. Andrea Fricke Duarte. 2011. Figura 40. HH_22 . Andrea Fricke Duarte. 2013. 12 Para Isabela. 13 SUMÁRIO “diante da viagem é também diante do naufrágio.” (Manoel Ricardo de Lima). INTRODUÇÃO ESTUDOS DA FORMA I II. PODERIA SER UM INCÊNDIO – UM CORPO PEGA FOGO EM ATRITO COM O AR? III. USO DO REALISMO GROTESCO COMO ESTRATÉGIA PARA O RISÍVEL – ESTUDOS DA OSCILAÇÃO ENTRE A LEVEZA E O PESO IV. CAIR, QUEDAR – ENSAIO SOBRE O PESO ESTUDOS SOBRE A GRAVIDADE I ESTUDOS SOBRE A GRAVIDADE II ESTUDOS SOBRE A GRAVIDADE III ESTUDOS SOBRE A GRAVIDADE IV V. EXERCÍCIOS PARA UMA IDEIA OU SOBRE O ENSAIAR O MÉTODO – ESTUDOS DA GRAVIDADE NOTAS OU ANOTAÇÕES SOBRE O MÉTODO: EXERCÍCIO PARA UM PENSAMENTO EM QUEDA/VOO LIVRE: VI. SOBRE O DESPERTAR 17 20 27 34 42 73 100 102 113 1177 120 123 127 14 VII. ESCUROS ESTUDOS DA FORMA II – DIÁRIO DE PARIS VIII. LIVRE PARA FRACASSAR: DOIS PONTOS VAGALUMES IX. HILDA HILST – ENTRE O OBSCENO, O PORNOGRÁFICO, O ERÓTICO X. ESCRITA XI. O NEGATIVO E A ESCRITA XII. NOTAS DE ARQUIVO SOBRE (TEMPOS) SOBREPOSIÇÕES XIII. IMAGEM SOBREVIVENTE – OU REFLEXÕES SOBRE A IMAGEM UMA OBSESSÃO: HILDA HILST XIV. ESTRATÉGIAS PARA VER A LUZ OU FÓSFOROS – ILUMINAR AOS POUCOS DA OBSCENIDADE I XV. TU QUE ME VÊS GUARDAS EM MIM O OLHAR 139 157 168 178 194 206 213 214 218 234 232 242 248 251 15 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SITES FILMOGRAFIA ARQUIVOS CEDAE 260 267 270 270 16 “diante da viagem é também diante do naufrágio.” (Manoel Ricardo de Lima1). O que me interessa é a poesia2, essa coisa entranhada de palavra e alguma dor, poema como ferimento e curativo, que se arremessa, que se mastiga e que se cuspe, mas que também pode dançar no ar, desfeito de todos os seus pesos. Ou como uma palavra que tomba e como que aprende na urdidura do trajeto, em estado de queda livre, ser de repente, o próprio ser da queda, e pode ser que flutue sem se dar conta, plaine deslize no vento feito pluma perdida e sem destino. Dois movimentos se apresentam neste início de partida, e imagino que, mesmo que não fossem assim nomeados, surgiriam em algum momento no corpo do leitor. Chamo-os pelos seus nomes: o peso e a leveza – oscilações da gravidade. São movimentos que surgiram, e tornam a surgir cada vez que recomeço a leitura dos textos de Hilda Hilst, aqui propostos. Frequência, onde encontro uma repetição dessas sensações – peso, leveza, peso – recorrentes em todo o percurso da tese e invadem quase todas as cenas desta escrita que pensa outra escrita com e por ela, e por ela se dobra e se fabrica: ali na beira da letra de Hilda Hilst, caminhando rente a sua linha-língua, percebo ou reconheço em mim um desejo de escrever que ultrapassa a medida. Talvez todo ato de escrita 1 LIMA, Manoel Ricardo. Máquina, variações e paisagens – versão eletrônica. In: Revista Pessoa, 25 de março de 2014, Disponível em: Acesso em 29/12/2014 2 O que me interessa é... Proposição de um laboratório de textos ministrado por Elida Tessler, na disciplina Laboratório de criação de textos, no curso de Artes Visuais da UFRGS, 2008. 17 se configure como ultrapassamento, certo desgoverno que avança. Aqui posso marcar um ponto onde a minha escrita advinda da leitura de Hilda Hilst não sai incólume. Como se passasse por dentro do meu corpo e somente aceitando essa espécie de contaminação tácita, eu pudesse, a partir dela, falar algo. Apresento aqui, então, entre desgoverno e desmedida, formas informes, tentativas do que foi/tem sido um passeio pela escrita de Hilda Hilst. 18 “É triste explicar um poema. É inútil também. Um poema não se explica. É como um soco. E, se for perfeito, te alimenta para toda a vida. Um soco certamente te acorda e, se for em cheio, faz cair a tua máscara, essa frívola, repugnante, empolada máscara que tentamos manter para atrair ou assustar” 3. 3 Carícias: crônicas reunidas (1992-1995) – São Paulo: Nanquim Editorial, 1998, p.53. Foi atingido? Crônica publicada em 5 de julho de 1993 no Correio Popular de Campinas e publicado posteriormente: HILST, Hilda. Foi atingido? In: Cascos e 19 INTRODUÇÃO Parece quase impossível começar. Que frase escolher? Há poemas de Hilda que eu sei “de cor“ mais de um verso. Há trechos de livros também, que vão me acompanhar a vida toda. Hilda Hilst me acertou em cheio, ela sabia das coisas, de muitas, muitas coisas que nem mesmo eu entendi direito. Talvez por isso eu insista e escreva um pouco mais sobre ela. Esta escritora incrível, genial, essa mulher extraordinária que Hilda Hilst foi. De cor: saber algo de cor, para nós, brasileiros significa: “reter na memória algo decorado; 2. Procurar guardar na memória aquilo que leu” 4, saber citar exatamente como foi escrito. Mas ao fazer uso deste termo ‘de cor’ automaticamente vem a significação da palavra francesa par coeur, que quer dizer de coração. E é desse modo que gosto de pensála. Este é o melhor ponto de partida que posso encontrar: escrevo sobre Hilda Hilst porque ela me acertou em cheio, lá dentro no coração. Pode parecer piegas, quase brega, ao estilo de Caio Fernando Abreu, a quem sou grata infinitamente por ter apresentado a Hilda Hilst nos seus escritos; lugar que funda o primeiro encontro e que o acompanha, de certa maneira. No sentido de que também há algo de Caio Fernando Abreu em Hilda Hilst. Um mesmo terror frente a esta existência, uma mesma ferida que não cicatriza nunca, um mesmo derramamento sobre a escrita. 4 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1975 p.424. 20 Aqui, neste ponto, grave até, se delineia um modo de se relacionar com a escritura, e pode se dizer de uma condição que toma a escrita como uma possibilidade de permanecer no mundo. E por esta razão, a própria filiação de Hilda Hilst a Georges Bataille e Samuel Beckett, a procura vertiginosa de um lugar que talvez tenha existido somente na escrita, e como uma condição trágica essa, de ser assumidamente aquele que instaura um lugar para si, a partir unicamente de um não-lugar. Será essa aposta de que é a partir de uma negatividade radical a condição mesma, de constituição de linguagem, de produção de subjetividade e de autoria que vai acompanhar, como um pano de fundo, minhas investigações acerca da literatura de Hilda Hilst. Lancei-me dessa vez a investigar sua trilogia erótica e/ou pornográfica – período bastante polêmico na obra da escritora, perturbador da “moral e dos bons costumes”, aspecto já presente nas obras anteriores, mas assumindo talvez, e essa é uma das hipóteses desta tese, um novo formato. Dessa investigação surgiu a ideia do despertar a partir de uma noção de obscenidade, acompanhada ainda das noções de escrita, arquivo, imagem e sobrevivência, pensadas sempre junto à atuação política desta escritura. A literatura de HH em geral, mas algo que se acentua no período pornográfico, fica num terreno que não é de fácil assimilação, nem sempre é compreendido. E sua potência talvez resida neste ponto – certa impossibilidade de apreensão direta. É antes de tudo, um soco, um efeito imediato sobre o corpo, sua potência é uma ação que desestabiliza o corpo. Esse desequilíbrio aparece então, como uma denúncia que Hilda Hilst faz ao homem e à cultura. Denúncia que ela faz aos berros, às vezes entre babas e excrementos, mas principalmente através de um riso múltiplo – algumas vezes sarcástico e ácido, outras, uma explosão deliberada e de pura ingenuidade, às vezes terrível e quase mortífero quando este assume, para mim, uma face inacessível. Momentos para mim, de queda e obscuridade. 21 Esta pesquisa também é fruto de uma pesquisa anterior (2009-2011) onde realizei o trabalho H H – Da dispersão à suspensão, quando pensei na produção da escritora na década de 1980, a saber, os livros escritos entre 1978 e 1982, Tu não te moves de ti (1980) e A Obscena Senhora D (1982)5. Ao fim daquele trabalho, constatou-se uma mudança de posição enunciativa na escritora e uns anos mais tarde a assunção de uma espécie de “fracasso” no seu ideal pessoal referente à “grande literatura”. A escritora se lança numa escrita erótica e/ou pornográfica, que causou não apenas uma grande polêmica, mas o afastamento de vários amigos pessoais de Hilda Hilst, pela própria obra encarnar, às vezes, o lugar do abjeto. A trilogia é composta pelos livros O Caderno Rosa de Lori Lamby (1990), Cartas de um Sedutor (1991) e Contos d’escárnio/Textos Grotescos (1992). Por fim, entre os anos 1998 - 2004, a escritora assume um novo discurso: a desistência da literatura, quando declara publicamente: “não tenho mais nada a dizer” 6. Hilda Hilst escreveu em todos os gêneros literários, coisa rara dirão os críticos, mais rara ainda7, misturá-los anárquica e vertiginosamente nas obras de ficção narrativa. A escritora brasileira, nascida em Jaú, no interior de São Paulo, em 1930, começou escrevendo poesia e depois se aventurou no teatro, na prosa narrativa, tornando-se também cronista, romancista. Mas ainda podese dizer dela: lírica, intensa, sarcástica, inteligentíssima, dizia um de seus amigos8, e sobretudo, bem-humorada. Sua obra é marcada pelo erotismo e pelo grotesco, uma mescla entre o profano e o sagrado, numa busca radical pelo humano e pelo divino, junto a um 5 6 7 FARIA, Alvaro A. Hilda Hilst, o silêncio estrondoso. In: Caros Amigos, São Paulo: Casa Amarela, dez.,1998, p.13. ROSENFELD, Anatol. Prefácio. In. HILST, Hilda. Fluxo-floema. São Paulo: Perspectiva, 1970, p.10. PÉCORA, Alcir. Prefácio. In. HILST, Hilda. Contos d’escárnio: textos grotescos, São Paulo: Globo, 2008, p.5. 8 FUENTES, José Luis Mora. Entrevista disponível em: Acesso em 05/06/2013. DUARTE, Andrea Fricke. HH – Da dispersão à suspensão [Dissertação de Mestrado], Porto Alegre: UFRGS, 2011. 22 humor fino, debochado. Em 1976 construiu uma casa, a Casa do Sol, em Campinas para consolidar seu projeto pessoal de se tornar uma grande escritora. Considerada por alguns como difícil, sua vasta obra literária se iniciou aos vinte anos com um livro de poemas. Hilda faleceu em 2004, aos 74 anos, deixando mais de 50 livros publicados. A atual pesquisa, sensível à trajetória de Hilda Hilst, e querendo elevá-la a uma pensadora da cultura, reconhece que há algo importante sendo transmitido nesta dobra – a vida e a obra da escritora. Esta pesquisa se lança, portanto, num percurso que toma a arte, a psicanálise, a crítica e a utopia como companheiras de viagem, com o intuito de fazer estes campos do conhecimento dialogar entre si: vê na arte contemporânea um norte referencial na sua dimensão política de denúncia e convocação do público a novos modos de viver a arte e a vida. Para Sousa e Ferreira (2010, p.77) a arte contemporânea, acolhendo o abjeto, nas produções artísticas, trabalhando com o excesso e com aquilo que é “resto que faz corpo e poeira ao nosso olhar” recupera a sua potência mesma, podendo a arte dar lugar assim ao estranho; desse modo, fazer resistência às categorias que até então regulavam o campo visual. “Objetos, portanto, que obrigam uma reformatação dos conceitos, dos paradigmas, do discurso”. Isto nos interessa, uma vez que as “categorias” do abjeto fazem parte do universo hilstiano, onde o pornográfico é colocado em cena. Segundo Alcir Pécora, no prefácio de Cartas de um Sedutor (2009), a pornografia, manifestando o irreprimível, uma “vertiginosa e anárquica dos interditos básicos, costumeiramente ideologizados em imperativos morais de ordem pública”, aqui atua como “imaginação do mal, da desordem, da mais radical amoralidade, constituindo-se desde o início contra a naturalização moralista da boçalidade”. A descrição de Alcir Pécora reúne aspectos do pornográfico no seu sentido político: atua um campo de desordem. A 23 passagem de tempos identificados pelos diferentes momentos enunciativos da escritora produz questões e mais, a atual pesquisa quer confrontar estas temporalidades entre si e com o momento presente. O quanto esta obra, por muito tempo, desconhecida dos leitores brasileiros – reeditada somente em 20029 e o teatro completo publicado pela primeira vez em 2008, pode revelar; certo anacronismo entre a criação e a recepção da obra. Como um enigma, nunca compreendido pela escritora, tantos anos de silêncio sobre sua produção não dizem respeito unicamente ao público e ao seu escritor, mas a todo um sistema editorial e a realidade de um país que vivenciou no período um golpe de Estado e uma abertura política que deixou profundos silêncios que começam a ser escutados agora10. Para o filósofo, historiador e crítico de arte, Didi-Huberman, o regime da imagem e da imaginação é um local de luta política, principalmente aquelas imagens que portam memórias e têm um poder de transmitir algo de um tempo que se passou. No seu livro A sobrevivência dos vaga-lumes, será principalmente no confronto “de um presente ativo com o passado reminiscente”, o momento mesmo em que “o Outrora encontra, aí o nosso Agora” (2011, p. 61) em que é possível se liberar de constelações ricas de Futuro. Para Didi-Huberman, então, serão as imagens sobreviventes, e sobreviventes ao nosso olhar, apesar de tudo, que portam em si a capacidade de “repensar nosso próprio princípio esperança”. O autor defende que, no confronto de tempos, é possível se DESTRI, Luisa. DINIZ, Cristiano. CRONOLOGIA. In: PÉCORA, Alcir (Org.). Por que ler Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2010. Em 2001, a Editora Globo passa a ser responsável por toda a sua obra publicada até o momento, respeitando-se os prazos de contratos ainda vigentes com outras editoras; Edição que em 2002, recebe o Grande Prêmio da Crítica pela reedição da obra de Hilda Hilst, coordenada por Alcir Pécora. Como a Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012, que tem por finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Disponível em: Acesso em 25/06/2013. 10 9 24 formar uma espécie de clarão, um brilho, uma constelação, em meio à obscuridade do tempo presente11. “A imagem que ‘passa como um relâmpago [...] imagem irrecuperável do passado que está arriscada a desaparecer com cada presente que não a reconhece”12 concentra a urgência política e estética, de pensar o presente junto dos escombros de uma memória que está prestes a desaparecer. Talvez esta seja a urgência colocada por esta pesquisa, que vê na escritora e na sua obra, não só a necessidade de reconhecimento que tem se construído nos últimos anos de maneira expressiva – principalmente quando Editora Globo passar a ser responsável a partir do ano de 2001 por toda a obra de Hilda publicada até o momento,– mas também a possibilidade de oferecer uma escuta atenta a esta produção, e potencializar as vozes políticas e contestadoras que estas obras implicam. A investigação desse período implica também certas aberturas: primeiro, numa abertura temporal que procura pistas ao investigar as noções de erótico, de pornográfico, de obsceno e do risível através tanto da obra publicada como dos arquivos pessoais. Uma segunda abertura diz do modo como a aproximação com o objeto de pesquisa produz ou se contamina de um desejo de criação, conferindo ao pesquisar, um estatuto de invenção, e que para realizar-se ensaia de diversas maneiras – experimenta formas, coloca em prática diferentes linguagens para compor um pensamento: ensaia textos literários, põe à prova e forja imagens, ensaia exercícios de escritura como forma de investigação e proposição de um pensamento-esboço, um pensamento quase desenho. Um pensamento quase queda, um pensamento quase vertigem. Se possível, um pensamento quase sonho. Diante da literatura de Hilda 11 12 BLOCH, Ernst. Princípio Esperança. Vol. I Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. BENJAMIN, Walter. Sur le concept d’histoire (1940) Apud. DIDI-HUBERMAN In: Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. A sobrevivência dos vaga-lumes. Tradução de Vera Casa Nova, Márcia 25 Hilst, derrubados por seu soco, somos lançados no espaço. Entre a vertigem da queda e o prazer do voo, se apresentam as noções de peso e leveza e os estudos sobre a gravidade, nessa passagem incessante do texto literário hilstiano sobre o corpo. A gravidade assume um peso central na minha busca. Ela funda um ponto de apoio que se multiplica. Desde a lei da gravidade que determina a força que possui um corpo a partir de sua massa corporal, a aquilo que é grave, àquilo que importa e não pode ser ignorado. Pesquisei conceitos da física, da lei da gravidade entre outros, mais definições de dicionário e ainda fiz um ensaio fotográfico onde as perguntas que me interessam giram em torno desse eixo que para mim não é óbvio: gravidade – peso e leveza. Num estudo dentro da tese, investigo essa variação da noção de gravidade, e como uma aposta que caminha no escuro, prenhe ou grávida de devir, tenho esperança que alguma coisa acontece ou pode acontecer13, quando des(confio) que é de algum tipo de gravidade que careço. (mas o que é/como é ter ou não ter gravidade, peso, leveza?) Irei aqui compartilhar essas impressões de percurso como uma leitura possível, a minha leitura. E é importante dizer, que cada leitor de Hilda talvez encontrasse outros nomes para dizer de sua experiência do encontro com essa literatura. Significa dizer, então, de uma singularidade que se circunscreve em cada encontro, e as imagens que proponho só existem dentro de uma relação - àquela que estabeleço com este universo de vida e obra da escritora. 13 TESSLER, Elida. Aula ministrada na disciplina Laboratório de criação de textos, no curso de Artes Visuais da UFRGS, 2008. 26 ESTUDOS DA FORMA I 27 É no limite que tudo se arrisca. A linha fisga. Escrever em vertical. 28 I - ESTUDOS DA FORMA I Quero nascer quero nascer! É o De repente que fala. Quero nascer, quero nascer poeta, novo, quero aprender a cantar e a dançar. Sentir o movimento dos meus membros, braços, pernas, coração. O balanço do peso de ir e voltar ali, a gravidade das coisas de dar passos. Quero nascer! Grita o Instante, ele e De repente nasceram perto das mesmas vontades, foi muito rápido que se fizeram amigos. Instante e De repente gostam de respirar, de descobrir o novo cheiro de um mato nunca antes sentido, como aquela vez no parque, no meio de uma pequena floresta nunca antes visitada, a primeira vez que De repente viu um esquilo, tantas vezes havia sonhado antes, o Instante com aquela possibilidade de ver a vida silvestre, que quando o olhar deles se cruzou, eles se tornaram juntos: olho e paisagem. Chão, árvores, cheiro e relvas, folhas e musgos. Naquele espaço havia também casas preservadas, cuidadas, restauradas. Havia nelas histórias antigas e vidas. Vidas de uma cidade, de ofícios que se modificaram, detalhes que talvez só o seu interior pudesse saber, se nelas houver ainda algum objeto, para que possamos lhes lembrar ou adivinhar o uso, talvez a cor ou talvez um lado mais gasto por um movimento do seu dono que não teremos acesso. Casas ali, guardadas, preciosas. O que elas guardavam nelas, nas suas paredes, era, sobretudo, uma beleza de um tempo que não está mais lá, mas de um modo estranho, ainda mora nelas, como se o tempo estivesse impregnado nas tábuas e paredes tortas, no caimento das janelas como se fossem pregas de um vestido de senhora antiga. Eram casas cheias de vida, que pulsavam, apesar de viverem apenas expostas como um museu, e sem que ninguém mais habite nelas há muito tempo. 29 Como se faz para habitar uma casa, como se faz para habitar uma escrita, como se faz para se percorrer uma obra literária? Diante da viagem é também diante do naufrágio, diz o poeta. De certa forma, todo começo de travessia implica em um perigo, e que pode ser o lançar-se a uma experiência14. Esta tese não se trata de outra coisa, ela é o tempo inteiro um tatear de livros e palavras, um colocar-se em risco ao oferecer uma leitura para ser compartilhada. Tenho medo, logo existo. Nesta existência árida do contemporâneo, por vezes, é difícil mover-se. Sentada em seu escritório, numa tarde entre o ano de 1985 e 1992, Hilda Hilst toma a seguinte nota: “Não sabemos nada e estamos no fundo da noite – citado por Bataille, pg.10 de Hist. do Olho” 15 . Constato que não foi apenas da literatura publicada de HH o material que pesquisei. Fiz incursões sobre os arquivos pessoais dela, que estão localizados na cidade de Campinas, no Centro de Documentação Alexandre Eulálio (CEDAE) e imagino ter sido capturada por esse universo de extrema intimidade que é ler agendas, cartas, fotos, desenhos e cadernos de anotações pessoais. Há uma sombrasensação de muita intimidade que estabeleço com a escritora. Sinto por vezes uma espécie de mimeses, de mistura, de excesso de proximidade. “Sousa ainda nos presenteia com a etimologia da palavra experiência: como travessia de um perigo. Segundo Rocha na palavra portuguesa 'ex(peri)ência', temos o radical latino peri, que, como o seu correspondente grego, peira significa 'obstáculo' e 'dificuldade'. Este significado aparece claramente na palavra latina periculum (que significa 'perigo') e no verbo aperire (que quer dizer 'abrir'). Nos dois casos, temos a ideia de uma ação que enfrenta dificuldades ou remove obstáculos (ROCHA, 2008)”. Aula ministrada no Programa de Pós-graduação de Psicologia Social da UFGRS, em 22 de setembro de 2010. (DUARTE, Andrea Fricke. HH – Da dispersão à suspensão. [Dissertação de mestrado] Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional. Porto Alegre, UFRGS, 2011. 15 14 Arquivos pessoais. 30 Mimese: [Do gr. Mímesis, ‘i mita ção’ + -ismo]. S.f. Ret. Figura que consiste no uso do discurso direto e principalmente na imitação do gesto, voz e palavras de outrem.16 Essa figura da imitação do gesto, voz e palavras de outrem constituem esta tese. Talvez parta de um encontro amoroso, no sentido que Roland Barthes dá a ele a partir da ideia de simulação: Essa palavra... eu a uso da seguinte forma, a partir, aliás, do sentido próprio de simulação: introduzir no “verdadeiro” o “falso”, introduzir no “mesmo” o “outro” (...) ... pulsão que faz emergir um Outro em mim mesmo = força de alteridade a partir de, no interior da Identidade → Passar do ler amoroso ao Escrever é fazer surgir, deslocar da Identificação imaginária ao texto, do autor amado (que seduziu), não o que é diferente dele (= impasse do esforço de originalidade), mas aquilo que, em mim, é diferente de mim, o estrangeiro que sou para mim mesmo. (BARTHES, 2005, p. 24) Hilda Hilst como uma autora amada, na qual (acredito? simulo? invento?) um habitar próximo, e forjo na e com a escritura, entre imitação e simulação, no desejo de escritura, ver nascer ali, quem sabe, em toda essa proximidade, uma marca estrangeira. São ensaios em que reconheço esse traço, uma imitação de vozes, de gestos e de palavras de outrem. No entanto, multiplico. Para escrever essa tese com a Hilda Hilst foram necessários muitos outros: 16 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1975 p.925. 31 São pensamentos tomados de empréstimo, de escritores, poetas e artistas de que faço uso. De aulas e professores e até mesmo de amigos generosos. Uma tentativa de composição, de gestação, de pulsação de ideias e impressões. As muitas definições de dicionário, por exemplo, é uma imitaçãocontaminação de um gesto recorrente de Hilda Hilst em suas pesquisas. Em diversas páginas de seus cadernos é possível encontrar listagem de palavras que ela pesquisava para compor sua escrita. E eu, tenho uma predileção por definições de dicionário. Não lembro mais quando foi que isso se deu. Figura 1. Andrea Fricke Duarte, 2013, HH_38 (Caderno 1995-1999) – Arquivos CEDAE I, fotografia digital. 15,5 cm x 9,5 cm 32 Já não sei o que é contaminação minha de Hilda Hilst, se haveria um próprio do sujeito, dado que estamos numa imersão constante com o mundo. Essa questão da imitação e da incorporação vai colocar em cena algo fundamental e compartilhado tanto pela psicanálise como pelo terreno do ficcional. Entraremos nessa questão um pouco mais adiante. Figura 2. Andrea Fricke Duarte, 2013, HH_39 (Caderno 1995-1999) – Arquivos CEDAE I, fotografia digital. 17 cm x 13 cm 33 II. PODERIA SER UM INCÊNDIO – UM CORPO PEGA FOGO EM ATRITO COM O AR? Numa sala pública abro um pequeno livro e começo a leitura. Passados alguns poucos minutos e os primeiros sinais são esses: minhas bochechas estão acentuadamente rosadas, quentes e meu batimento cardíaco está acelerado. Levanto os olhos, assustada, olho ao redor, é um café dentro de uma livraria. Sinto uma vergonha imensa, como se os outros pudessem conhecer meus pensamentos. Como se todos pudessem ter acesso ao que eu acabara de ler e experimentar. Excitação, confusão, inocentemente sentada lendo um livro. O encontro com a pulsão erótica num ambiente público me provoca vergonha, suores e susto, descompasso. Fora de lugar? Inadequação? Não sei o que fazer dentro do café da livraria. Gostaria de desaparecer? Fecho o livro e espero o coração e a respiração desacelerarem. [Em algum momento de 2008, o primeiro encontro com o Caderno Rosa de Lori Lamby , de Hilda Hilst.] Eu tenho oito anos. E vou contar tudo do jeito que eu sei, porque a mamãe e o papai me falaram para eu contar do jeito que eu sei. E depois eu falo do começo da história. Agora eu quero falar do moço que veio aqui e que mami me disse agora que não é tão moço, e então eu me deitei na minha caminha que é muito bonita, toda cor-de-rosa. E mami só pode comprar essa caminha depois que eu comecei a fazer isso que eu vou contar. Eu deitei com a minha boneca e o moço que não é tão moço pediu pra mim tirar a calcinha. Eu tirei. Aí ele pediu pra mim abrir as perninhas e ficar deitada e eu fiquei. Então ele passou a mão na minha coxinha que é muito fofinha e gorda, e pediu que eu abrisse as minhas perninhas. Eu gosto muito quando passam a mão na minha coxinha. Daí o homem disse para eu ficar bem quietinha, que ele ia dar um beijo na 34 minha coisinha. Ele começou a me lamber como o meu gato se lambe, bem devagarinho, e apertava gostoso o meu bumbum. Eu fiquei bem quietinha porque é uma delícia e eu queria que ele ficasse lambendo o tempo inteiro, mas ele tirou a aquela coisona dele, o piupiu, e o piupiu era um piupiu bem grande, do tamanho de uma espiga de milho, mais ou menos. Mami falou que não podia ser assim tão grande, mas ela não viu. E quem sabe o piupiu do papi seja mais pequeno, do tamanho de uma espiga mais pequena, de milho verdinho. (HILST, 2010, p.13-14). Obsceno. [Do lat. obscenu.] Adj. Que fere ao pudor; impuro, desonesto. 2. Diz-se de quem profere ou escreve obscenidades. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1975 p.987). Obscenidade. [Do lat. obscenitate.] S.f. 1. Qualidade ou de caráter obsceno. 2. Palavra, gesto, ato, imagens obscenas (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1975 p. 987). Estou tentando encontrar uma maneira de começar. Todas as tentativas anteriores me pareceram inadequadas. O ponto impossível de lançar, de encontrar, de inventar uma palavra que fosse a palavra certa. Tenho uma tendência a desviar do assunto, de forjar sempre uma nova frase. Nesta escrita é a dimensão do erro e do que falha que vem. Farfalhar. Folhear. A escritura inventa seu próprio texto. Um texto que queria conhecer a sua própria imagem, seu movimento, ou um pouco mais preciso: um texto que queria ter um corpo. Um texto que quer tocar, que quer se fazer tátil, pleno de uma multidão de sensações. 35 Vamos aos poucos, mas vamos com Hilda (1970, p.60), sempre: “Difícil, não? Tudo é difícil Ruiska, dificílimo, arrota pra ver se não é duro, vê, não conseguiste, peida, vê, não podes, coça o meio das costas, vê não consegues, anda de lado e sentado, vê, é dificílimo, acalma-te, come o peixe, agora sim está frito, estás frito também, pois coexistes”. Assim se encerra Fluxo, a primeira das cinco novelas contidas em Fluxo-floema, o primeiro livro em que Hilda Hilst se lança na ficção narrativa. Ali já estavam presentes algumas marcas que só iriam se acentuar nos livros seguintes, na construção de seu estilo de escrita. Escrita que dá um lugar para a angústia, como na frase que abre Fluxo: “Calma, calma, também tudo não é assim, escuridão e morte. Não é assim?” ou para as questões metafísicas “Eu havia estudado o homem. O homem na sua quase totalidade, o homem em relação a si mesmo, em relação ao outro, em relação a Deus, sim, principalmente em relação a Deus” (Ibidem, p.30). Mas essas questões sempre são acompanhadas da materialidade do mundo, da constância da carne: “Irriga tua cabeça, velho Ruiska, suga a vitalidade da terra, torna-te terra, estende-se no chão agora, abre os braços, abre os dedos, faz com que tudo se movimente dentro de ti, torce as tuas vísceras, expele o teu excremento.” (Ibidem, p. 26). O corpo humano e seus orifícios são frequentemente apresentados por Hilda, por exemplo, a palavra “cu” ou “uc”, é retomada quatro vezes apenas nas primeiras duas páginas da novela e nela, Fluxo, o “uc” aparece relacionado diretamente com a temática de um escritor que deve um texto para o seu editor: “...toma quinhentos cruzeiros novos e se não ta com inspiração vai por mim, pega essa tua folha luminosa e escreve aí no meio da folha aquela palavra às avessas. Uc? Não seja idiota, essa é a primeira possibilidade, invente novas possibilidades em torno do. Amanhã eu pego o primeiro capítulo, ta?” (Ibidem, p.24). Aqui, no encontro com um texto de Hilda percebemos que algo de obsceno já se encontrava duas décadas antes no seu texto. Retorno que considero importante, porque a escrita chamada pornográfica tem algo 36 de mais direto no encontro com o leitor. Em 1970, já temos também um traço do risível, um humor característico do estilo hilstiano que sempre flerta com a angústia, e que, talvez por isso, para alguns, foi um texto considerado difícil. É fato, que o humor no texto nem sempre é óbvio. Diálogos do personagem-escritor Ruiska, interrogando-se a respeito do sagrado e do profano, nas figuras de Deus e do “Cornudo”, e a presença constante do humano com suas funções corporais, a boca e o ânus sendo presentificados no texto são elementos que se repetem na sua escrita, mas sempre acompanhados do risível. “Quem é você Ruiska? Hein? Está bem, está bem, sou um porco com vontade de ter asas.” (Ibidem, p. 27). Essa repetição em que a divindade e a animalidade são igualadas é uma operação hilstiana que foi nomeada pela própria Hilda em Fluxo, nas figuras da claraboia e do poço, no qual o personagem-porco-com-asas- escritor usa seu telescópio para olhar as estrelas, mas, ao mesmo tempo, ele utiliza o telescópio para olhar o poço. Quando o poço aparece na novela, aparece junto à figura de um anão: “De onde você vem, hein? Do intestino, da cloaca do universo, do cone sombrio da lua.” (Ibidem, p. 34); Essa operação hilstiana havia sido identificada na pesquisa anterior, mais acentuada no livro A Obscena Senhora D (2001a), na figura de um Menino-Porco, uma divindade dividida entre uma infância louca, desgovernada e a animalidade, mais uma vez na figura de um porco. Na primeira frase do romance, Hillé se intitula teófaga. Teófago é aquele que come deus. Aqui não temos bem certeza quem é devorado. Ora somos nós, leitores, devorados pelas perguntas irrespondíveis de Hillé, de sua fúria desejosa e desesperada por alguma garantia que ela pudesse repousar um pouco a cabeça. Ora, será ela devorando a divindade, furando sua ideia de totalidade, tornando o divino entre o humano e o animal: o porco-menino, entre uma infância louca desgovernada e a animalidade. 37 Iria? suportaria guardar no peito esse reservatório de dejetos, estanque, gelatinoso, esse caminhar nítido para a morte, o vaidoso gesto sempre em suspenso em ânsia de te alcançar, Menino-Porco? (HILST, 2001a, p.33) Ou ainda: Compreender o jogo brinquedo do Menino Louco, pensa um pouco Hillé, pensa no sinistro lazer de uma criança louca, ou pensa em crianças brincando com gatinhos, com ratos, com tristes cadelas vadias, ó vinde a mim as criancinhas, que sabemos nós de criancinhas? Como pôde dizer isso, ele que dizia que muito sabia? (HILST, 2001a, p.20) O que Hilda Hilst põe em cena é justamente uma tensão entre o desejo intenso de encontrar uma resposta, completa e segura das coisas e a impossibilidade mesma de alcançá-la. Com seu marido, a compreensão impossível, o desencontro persiste por uma recusa. E, com a totalidade, e aí talvez entre de modo mais sutil a ironia de Hilda Hilst, é desde o princípio um encontro falhado; eis que a totalidade está destroçada de sua própria qualidade, que é a sustentação da ideia de divindade. Em determinado momento Hillé pergunta: “Ai Sr. tens igual a nós o fétido buraco?” (HILST, 2001a, p.45) – esse Deus, um porco-menino, que teria respostas, que faria sentido, que taparia o furo da existência, não fosse ele um porco. Qual seria a relação entre a claraboia e o poço com essa operação de Hilda Hilst de animalizar o divino? Claraboia é uma palavra de origem francesa Claire-voile, e é definida “como uma abertura no alto dos edifícios, geralmente fechada por um caixilho com vidro, destinada a permitir a entrada de luz; 2. Janela redonda, ou fresta, por onde entra luz em uma casa.”17 Ao recorrer a esta imagem de uma abertura por onde entra a luz, contrastada com a imagem do poço, justamente onde se localiza uma ausência de penetração 17 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1975 p.333. 38 da luz, Hilda Hilst evidencia esta oposição entre obscuridade e claridade e cria um jogo no qual entram em relação as oposições ascensão e a queda, o de cima e o de baixo, o Divino (um ideal de perfeição – e o homem querendo ascender a ele) confrontados com a irracionalidade da natureza animal e com as funções corporais, que lembram o homem de sua condição. Não bastasse isso, Hilda insere também uma oposição do movimento: morosidade a galope18, um tempo e um espaço convulsionados pela oposição das suas polaridades, até ganharem um aspecto alucinatório, vertiginoso – do qual é impossível sair ileso, principalmente pela busca hilstiana de um escritor de dentro, que quer falar do humano sem excluir a experiência do corpo, e, portanto, daquilo que o degrada lentamente em direção à morte. Por este motivo, faz questão ao mistério da existência. Nos anos de 1977 e em toda década de 198019, Hilda Hilst é povoada por estas intensidades e pela busca de uma medida, ela quer antes de encontrar respostas, colocar as questões mais difíceis, testar e tencionar ao máximo, através da sua linguagem literária, o humano e o divino, até o limite inexorável: a morte. Para mim sempre é uma experiência do atordoo, sempre um experimentar algo que não é qualquer. A epígrafe que abre O caderno rosa de Lori Lamby é uma citação de Oscar Wilde que diz: “Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas.” Então abaixo e completando a citação está escrito: “E quem olha se fode”, frase de Lori Lamby, a personagem. Aqui, estamos em 1990. O humor de Hilda está sempre presente. Agora eu ia citar como o humor aparece 18 Anotações de Hilda sobre a composição da personagem em A Obscena senhora D: ”O tempo da Senhora D. morosidade/galope. Tingido de agora”. Material retirado dos arquivos pessoais de Hilda Hilst, na primeira visita em 2009, quando eles estavam organizados por pastas: Pastas 39 e 40 (Ver referências bibliográficas - Arquivos CEDAE 1). Nas décadas anteriores, desde o começo de sua obra, que começa com a poesia, Hilda Hilst é de uma enorme seriedade, mas não v amos discutir esses períodos nesta tese. 19 39 em 1970, no livro Fluxo-floema. Mas percebo que o livro se encontra numa das duas caixas de livros (eram quatro ao todo) que foram perdidas na travessia Paris-Porto Alegre, e que uma delas se extraviou de fato, enquanto a outra foi localizada em Paris e retornou ao antigo endereço. Encontro-me agora tomando providências para que ela seja enviada pela segunda vez. Alguns livros de que preciso encontrei na biblioteca, mas há outros, que necessito adquiri-los novamente, dois deles de Hilda, como Fluxo-floema e Cascos e carícias, eram as edições originais (primeiras edições). Se não estiverem na caixa que está em Paris, é muito pouco provável que eu os encontre que não sejam as novas edições. 40 ' • - -. , • ., - ...... f .homem • n ' t.s ri oo , romano , foi de60la.ào /\ '"':::............ .,._1-'0 lgUJrJ qüinba de-ba'to.lh v C...r). e ho dia seguinte .Jhizeque foi um ,.,p .._.,.... '-•4>\'"""' ., -. Usuiiet ooZt•a. • ço ou no peito quando ela talo ssal AUA IQ,;t 41 III. USO DO REALISMO GROTESCO COMO ESTRATÉGIA PARA O RISÍVEL – ESTUDOS DA OSCILAÇÃO ENTRE A LEVEZA E O PESO Hilda Hilst sabe levar o leitor a observar as estrelas, mas não sem passar pelo obscuro do corpo, pela convulsão da carne. Sonia Purceno, pesquisadora de Hilda Hilst, retoma a citação de Oscar Wilde e diz que esta oposição sarjeta/estrelas situa “a linha vertical entre o alto e o baixo, retomando a posição de claraboia e poço” afirmando que Hilda entendeu que não há outro lugar senão o baixo, a sarjeta, e que é de lá que é preciso escrever (2010, p. 79). Afinal, é preciso lembrar, Hilda quer acertar o leitor com um soco forte o suficiente para acordá-lo. Essa construção literária de Hilda Hilst, de animalizar o divino e, desse modo, blasfemar contra divindades remonta a uma antiga tradição que foi estudada por Bakhtin (1989), ao resgatar o realismo grotesco no seu texto A cultura popular da Idade Média e no Renascimento. No contexto de François Rabelais, quando ele retoma o aspecto cômico da cultura popular, a partir do carnaval e as suas relações sociais. Mas o que nos interessa é justamente o traço de rebaixamento, no qual ele vê a degradação como um princípio ativo do riso popular. Para Bakhtin, degradar significa entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a do ventre, e dos órgãos genitais, e, portanto com atos como o coito, a concepção, a gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades naturais. A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo nascimento. E, por isso, diz ainda o autor, não tem somente um valor destrutivo, negativo, mas tem também um positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação (BAKHTIN, 1989, p. 19). 42 Hilda Hilst parece estar inserida nessa tradição, se consideramos o que Bakhtin nos conta sobre fenômenos linguísticos surgidos após os festivos carnavalescos. Esses consistiam em um uso frequente de grosserias blasfematórias dirigidas às divindades, e constituíam um elemento necessário dos cultos cômicos antigos, mas mudavam de sentido durante o carnaval. De fato, durante o carnaval essas grosserias mudavam consideravelmente de sentido: perdiam seu sentido mágico e sua orientação prática específica, adquiriam um caráter e profundidade intrínsecos e universais. Graças a essa transformação, os palavrões contribuíam para a criação de uma atmosfera de liberdade, e do aspecto cômico secundário do mundo (Ibidem, p.15). Esse aspecto do riso produzido ao blasfemar contra divindades e de positivar a degradação do corpo como dispositivo para provocar o riso popular, traz o grotesco como elemento que não pode ser separado do riso. Bakhtin vai contextualizar o grotesco pensando nele como uma proposição sobre o “pensamento das imagens” da humanidade. Ele vai traçar semelhanças e diferenças do grotesco referido à cultura popular na Idade Média e no Renascimento, do grotesco romântico e modernizado, no qual algumas alterações no sentido serão radicais. Suas definições são importantes porque dialogam com a obra de Hilda Hilst na construção de sua poética, como podemos ver neste trecho do livro Cartas de um Sedutor: Então, ouça, vê se vens. Vou me fixar em prexecas logo mais. Vez ou outra posso ter recaídas porque bozó é bozó e comer bozó é dilacerante mesmo, dilacerante para o outro e bom para os dois. Dão o nome de desejo a essa comilança toda. Na natureza tudo come. Do leão à formiga. Até as estrelas engolem umas às outras. Tenho cagaço do cosmos. O Criador deve ter um intestino enorme. Alguns doutos em ciências descobriram que quanto maior o intestino, mais místico o indivíduo. E quem mais místico do que Deus? Grande Intestino, orai por nós.” (HILST, 2009, p.78-79) 43 Bakhtin realiza uma operação de positivar um negativo, a partir do realismo grotesco, quando ele vê o degradar como uma forma de entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo. Será essa operação de positivar um negativo que eu gostaria de pensar sobre o obsceno em Hilda. Na descrição da palavra obsceno, em sua definição encontramos àquilo que fere ao pudor e àquilo que é impuro. Certamente a referência constante de HH aos orifícios do corpo fere ao pudor. Quando narra sobre seus excrementos, necessariamente atualiza a moral judaico-cristã que trata do corpo como aquilo que precisa ser purificado dos pecados da carne. Mas há também em HH exatamente uma desmontagem dessa lógica, por meio de uma mesma operação de Bakhtin, como encontramos na passagem anteriormente citada: “suga a vitalidade da terra, torna-te terra, estende-se no chão agora, abre os braços, abre os dedos, faz com que tudo se movimente dentro de ti, torce as tuas vísceras, expele o teu excremento.” (1970, p.26). Ao associar a vitalidade da terra com a ordenação torna-te terra, seguida da ordenação natural – expele teu excremento – podemos ver que seus textos acabam por denunciar o tempo todo a presença amalgamada do corpo ao espírito, se lembrarmos de que esses ciclos naturais de renovação e fertilidade da terra tiveram sua origem nos festejos pagãos antigos e da Antiguidade, diz Bahktih, ao fazer uma ponte ao reconhecer o “elo genético” destes festejos mais primitivos com os da Idade Média, relacionadas as colheitas e aos cultos, onde se mantém uma relação muito mais universal . Esse traço está presente no que caracteriza o realismo grotesco descrito por Bahktin: 44 No realismo grotesco, a degradação do sublime não tem um caráter formal ou relativo. O “alto” e o “baixo” possuem aí um sentido absoluta e rigorosamente topográfico. O “alto” é o céu; o “baixo” é a terra; a terra é o princípio de absorção (o túmulo, o ventre) e, ao mesmo tempo, de nascimento e ressurreição (o seio materno). Este é o valor topográfico do alto e do baixo no seu aspecto cósmico. No seu aspecto corporal, não está nunca separado com rigor do seu aspecto cósmico, o alto é representado pelo rosto (cabeça), e o baixo pelos órgãos genitais, o ventre e o traseiro. (...) Precipita-se não apenas para o baixo, para o nada, a destruição absoluta, mas também para o baixo produtivo, no qual se realizam a concepção e o renascimento, e onde tudo cresce profusamente. O realismo grotesco não conhece outro baixo; o baixo é a terra que dá vida, e o seio corporal; o baixo é sempre o começo. (BAHKTIN, 1989, p.18-19) “O baixo é sempre o começo”. Essa categoria da renovação presente no realismo grotesco, que vê na morte então uma etapa natural para o advento da vida, me faz pensar na operação realizada por Hilda Hilst através de Bataille: o “me sinto livre para fracassar”. Pergunto-me se é similar à operação de Samuel Beckett – fracassar melhor20. São espécies de formulações literárias para a experiência da escrita e da vida que se relaciona com o surgimento de alguma esperança após a aceitação do fracasso. Algo que reconhece algo do morrer dentro do próprio viver, mas que se alternam em movimentos cíclicos. E caminha muito próximo da proposição de Didi-Huberman de suas imagens-vagalume. Tenho a impressão que um pensamento está sendo gestado ao longo desta escrita, embora eu não tenha ainda sua imagem. Hilda Hilst se utiliza do realismo grotesco, parece ir ainda mais longe, e propõe a divindade como terrena, possuidora de um corpo. Dessa sua proposição podemos pensar numa destituição do divino, ou “Não importa. Tentar de novo. Falhar de novo. Falhar melhor” (No matter. Try again. Fail again. Fail better). BECKETT, Samuel. “Pra frente o pior”. In: BECKETT, Samuel. Companhia e outros textos. Tradução de Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2012, p.65. 20 45 ainda, numa divindade em forma de estômago, cuja função que se pode deduzir seria a criação como uma grande digestão, cujo produto, o homem, não seria mais do que as fezes do divino. “Grande Intestino, orai por nós” (HILST, 2009, p.79). A esta provocação hilária, para não dizer quase que insana e ao mesmo tempo genial de Hilda Hilst, podemos reconhecer o ato político de sua tomada de posição, dessa disposição ao risível, e de tornar cômica uma das grandes ilusões do homem, segundo Freud, a religião21. Importante lembrar que esta frase pertence à década de 1990, e retomarei essa passagem um pouco adiante. O obsceno pode então ser pensado a partir destas proposições de Hilda como uma profanação do divino, uma desmontagem ou remontagem da noção do sagrado. Através do jogo positivo-negativo da degradação, de rebaixar a divindade ao frágil corpo humano, o tom humorístico aparece ao mesmo tempo como crítica da moral religiosa, mas também como uma pergunta que soa obscena, que fere a sacralidade: “As ideias religiosas são ensinamentos e afirmações sobre fatos e condições da realidade externa (ou interna) que nos dizem algo que não descobrimos por nós mesmos e que reivindicam a nossa crença. (...) (p.34). Avaliar o teor de verdade das doutrinas religiosas não se acha no escopo da presente investigação. Basta-nos que as tenhamos reconhecido como sendo, em sua natureza psicológica, Ilusões. (...) (p.41).” FREUD, S. O Futuro de uma ilusão (1927) In: . Obras Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. 2ªed. Rio de Janeiro: Imago, 1987, p.34/p.41. 21 46 Está me ouvindo, Hillé? Eu disse que estou sujo, entre ossos, num vazio escuro. Eu também Senhor, eu também. Convém lavarmo-nos, pêlos e sombras, solidões e desgraças, também lavei Ehud no fim algumas vezes, sovacos, coxas, o escuro buraco, sexo, bolotas, Ai Senhor tens igual a nós o fétido buraco? Escondido atrás mas quantas vezes pensado, escondido atrás mas todo espremido, humilde mas demolidor de vaidades, impossível ao homem se pensar espirro do divino tendo esse luxo atrás, discurseiras, senado, o colete lustroso dos políticos, o cravo na lapela, o cetim das mulheres, o olhar envesgado, trejeitos, cabeleiras, mas o buraco ali, pensaste nisso? (HILST, 2001a, p.45) O buraco ali, pensaste nisso? Hilda Hilst tinha lido em 1978 o livro ganhador do prêmio Pulitzer do ano de 1974, A negação da morte, do antropólogo americano Ernest Becker. A leitura desse livro teve grande influência na escritora, principalmente na escrita do livro A obscena senhora d (1982), livro que ela dedicou a Becker – “Dedico este trabalho, assim como o anterior, Da morte. Odes Mínimas, e também meus trabalhos futuros (se os houver) à memória de Ernest Becker por quem sinto incontida veemente apaixonada admiração. HH”. Podemos perceber a forte marca que o texto fez na escritora neste trecho em que Becker (1976, p.79) formula que “é impossível para alguém enfrentar o terror da sua condição sem angústia”: 47 É apavorante o fardo suportado pelo homem, o fardo experiencial. O corpo do homem é um problema que tem que ser explicado. Não só seu corpo é estranho, mas também sua paisagem interior, as lembranças e os sonhos. As próprias entranhas do homem, seu eu, lhe são estranhas. Ele não sabe quem é, por que nasceu, o que está fazendo no planeta, o que se espera que faça, o que pode esperar ele mesmo. Sua própria existência lhe é incompreensível, um milagre como o resto da criação. (...) Como Maslow22 bem disse: ‘É exatamente o que há de divino em nós que nos deixa ambivalentes, fascinados e temerosos, motivados e em defensiva. Este é um aspecto do fundamental transe humano, o de sermos simultaneamente vermes e deuses’. Eis aí novamente: deuses com ânus. (...) Deste esboço dos complexos anéis de defesa que compõem nosso caráter, escudo neurótico que protege nossa pulsante vitalidade do pavor da verdade, podemos fazer uma ideia do difícil e terrivelmente doloroso processo de tudo-ou-nada que é o renascimento psicológico. E quando está concluído psicologicamente, só aí é que começa humanamente: o pior não é a morte, porém o renascimento propriamente dito – aí é que está o essencial. O que significa renascer para o homem? Significa ser sujeitado pela primeira vez ao aterrador paradoxo da condição humana visto que a pessoa tem que nascer não como um deus, mas como um homem, ou como um deus-verme, ou um deus que caga. Apenas, dessa vez sem o escudo neurótico que oculta a ambiguidade total da própria vida da pessoa. E por isso que o todo autêntico renascimento é uma verdadeira expulsão do paraíso, como as vidas de Tolstoi, Péguy e outros atestam. (...) A ironia da condição do homem é consistir sua mais profunda necessidade em livrar-se da angústia da morte e do aniquilamento; mas é a própria vida que a desperta, e por isso temos de nos abster de estar totalmente vivos. (BECKER, 1974, p.71-87) 22 MASLOW, Abraham . “The Need to Know”. Apud. BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976. 48 Ser um milagre como o resto da criação, mas ter plena consciência da morte é o que Becker chama de renascimento, de ser uma parcela do divino, mas ao mesmo tempo ser mortal, ser no fim comido pelos vermes, e, portanto, “ser um deus-verme, ou um deus que caga” (BECKER, 1976, p.79). Hilda Hilst toma para si inteiramente essa proposição, e como artista, como escritora coloca no seu texto esse terrível lembrete, que toca num ponto perturbador – nossa própria animalidade macula nossa ideia de divindade. Nos seus manuscritos do A Obscena Senhora D, datados do dia 01/06/1981, da minha primeira ida aos arquivos, em 2009, encontro: Ernest Becker – ‘O que é o ser teológico? 2 – O que é o ser religioso? É tentar o ----23 profundo, é perguntar-se em profundidade, buscar o além-limite; 3 - A Senhora D. é faminta de sua essencialidade Busca o inominável dentro de si mesma e usa para encontrá-lo ----24 dos artifícios ao louco dessa Busca. Desafia/ Provoca / Anula-se./ O ego superficial quer morrer, /A alma imortal quer submergir, quer nascer. Intensidade da experiência no eu essencial depende da gradação dessa intensidade. Afasta o homem da comunidade. Dobrar-se sobre si mesmo. A Senhora D. ama porque busca em intensidade. Ama as qualidades do seu Deus. Otto Rank – o homem é um ser teológico, se fosse dito por santo agostinho ou Paul Pilhn mas quando é dito por um psicanalista – brilhante assim e admirável é para prestar muita atenção. Ernest Becker considera Otto Rank absoluta/25genial. 23 24 25 (termo ilegível) (termo incompreensível) (Absolutamente genial 49 A criação literária de Hilda Hilst consegue mesclar aspectos do realismo grotesco, onde o traço de rebaixamento assume um aspecto regenerador da vida ao mesmo tempo em que há essa procura de santidade, de uma ideia ainda de Deus – “A Senhora D ama porque busca em intensidade. Ama as qualidades de seu Deus.” escreveu Hilda em suas anotações de composição da personagem. E o ponto de tensão que HH leva a um limite convulsivo através da personagem Hillé é a discussão teológica que a escritora lê em Ernest Becker – como ser uma parcela do divino, mas ao mesmo tempo ser mortal, ser no fim comido pelos vermes, e, portanto, “ser um deus-verme, ou um deus que caga”? (BECKER, 1976, p.79). Paradoxo propulsor de angústia. Algo passa então imediatamente para o corpo, sua busca teológica passa pela experiência corporal, e a personagem Hillé descobre no próprio íntimo um mistério, questiona suas próprias entranhas – “... não venha Ehud, não posso dispor do que não conheço, não sei o que é o corpo mãos boca sexo, não sei nada de você Ehud a não ser isso de estar sentado agora no degrau da escada (...)” (HILST, 2001a, p.23). Aqui, em A Obscena Senhora D, no ano de 1982, a possibilidade de carregar a santidade no corpo é um pensamento desenvolvido ao longo de outras obras da escritora – sustentando a ideia de que essa separação – corpo e espírito – já não é mais possível, tudo passa pela experiência corporal. Até mesmo o sagrado. Aqui, percebemos Hilda Hilst próxima de Bataille, quando ele investiga a expressão de gozo numa vítima de sacrifício 26 e coloca uma interrogação acentuada sobre o que acontece no instante Bataille vai desenvolver interrogações a respeito de uma fotografia importante para ele sobre o Suplício chinês: “Em 1905, na China imperial, um jovem chamado Fou Tchou Li foi considerado culpado pelo assassinato de um príncipe, Ao Han Ouan e submetido ao terrível suplício do s Cem pedaços. Por clemência (sic) do imperador, a vítima não foi queimada como era previsto, mas esquartejada viva em cem pedaços. Dois frances es assistiram à execução e a documentaram. Um deles, Georges Dumas, publicou uma das fotos em 1923, em seu Tratado de psicologia. Dumas intrigara Bataille observando que, por piores que fossem o meticuloso trabalho do carrasco e as dores da vítima, o que se via em seus olhos revoltos era uma express ão de êxtase. É bem verdade que o supliciado encontrava-se sob efeito de injeções de ópio, não para mitigar seu sofrimento, como se poderia supor, mas para prolongá-lo ainda mais. O 26 50 da morte. O obsceno, a obscenidade de Hillé, a Senhora D, aparece nesse ponto, operando um questionamento radical de certezas que se fundamentam na crença: Hillé não sabe, é aquela que se pergunta em profundidade – “sessenta anos à procura do sentido das coisas” (HILST, 2001a, p.17). E confirma ainda suas pesquisas acerta do erotismo e da santidade: “Todo aquele que se pergunta em profundidade é um ser religioso” (HH)27. Na entrevista Das sombras, concedida para o Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles (1999), HH é questionada sobre o que ficou de sua formação religiosa. Hilda responde: “Ah, ficou toda a minha literatura. A minha literatura fala basicamente desse inefável, o tempo todo. Mesmo na pornografia, eu insisto nisso. Posso blasfemar muito, mas o meu negócio é o sagrado. É Deus mesmo, meu negócio é com Deus.” (1999, p.30) Na mesma entrevista ao ser questionada sobre a sua decisão de escrever pornografia, Hilda diz simplesmente: “eu queria me alegrar um pouco” (1999, p.29). A partir de uma verticalização dessa busca teológica somada aos elementos do realismo grotesco utilizados por Hilda na construção do risível, vemos se desenvolver o que seria o obsceno. A obscenidade aparece como uma desmontagem que desnaturaliza ao colocar em evidência um profundo desconhecimento do homem sobre o sagrado, que, em A Obscena Senhora D, se revela numa procura sem sossego, através da experiência corporal e no limite último, morte. HH começa a ensaiar uma saída para a angústia quando convida o leitor a rir com ela “Do cornudo”, desse “Deus-porco” que a personagem Hillé questiona diretamente: “Ai Sr. Tens igual a nós o fétido buraco?” (HILST, 2001a, p.45). enigma estava criado.” BORGES, Augusto Contador. Imagens do Êxtase. Agulha Revista de Cultura n.9, Fortaleza-São Paulo, fevereiro de 2001. http://www.jornaldepoesia.jor.br/ag9bataille.htm Acessado em: 29/03/2015. 27 Imagem dos arquivos HH_9 51 É preciso realizar uma passagem. São dois momentos diferentes da escrita de Hilda. As décadas de 1980 e 1990 mais especificamente. Nos dois períodos, o humor está presente, mas vemos oscilar a posição de Hilda frente ao texto, no que deposita neles. O humor, que certamente cumpre uma função para Hilda Hilst, em 1982, no livro A Obscena Senhora D, ele me parecia mais amalgamado a certa agonia e uma seriedade densa, que arrasta a personagem Hillé para morar no vão da escada, para a reclusão, longe das gentes da vila. Para uma lucidez obscena – um excesso de luz sobre o mundo que a personagem desagua e se debate numa espécie de loucura de confrontar esse “deus-porco”, seu “Menino Precioso” com todo o seu, “ser imundo, vazio” (HILST, 2001a, p.47): abriste por acaso hoje o jornal da tarde? Não. Então não abriste. pois se o tivesses feito teria visto a fome, as criancinhas no Camboja engolindo capim, folhas, o inchaço, as dores, a morte aos milhares, se o tivesse feito terias visto também não muito longe daqui um homem chamado Soler teve as duas mãos mutiladas, cortadas em pedaços, perdeu mais de quatro litros de sangue antes de morrer, e com ele morreram outros golpeados com cacetetes, afogados em recipiente contendo água imunda e excremento, depois pendurados pelos pés, estás me ouvindo, Hillé? Matam, torturam, lincham fuzilam, o Homem é o Grande Carrasco do Nojo, ouviste? Sim. (HILST, 2001a, p.47) 52 Na minha última ida aos arquivos encontro uma nota, pequeno recorte de jornal guardado: “TORTURAS NO PARAGUAI”. Transcrevo a mão no meu caderno de notas, procedimento de pesquisa do Centro de Documentação Alexandre Eulálio (CEDAE): somente o uso do lápis, e ainda, o uso de luvas cirúrgicas para não correr o risco de danificar o material do arquivo: 53 Figura 4. Andrea Frieke Duarte,2013, Anotações Torturas no Paraguai/, fotografia digital. 20 em x 15,4 em 54 O fato de Hilda trazer para dentro do texto ficcional o não ficcional traz duas questões importantes. Em primeiro lugar, para mim essa notícia que encontrei nos arquivos, mostra um posicionamento diferente de Hilda no modo como ela trazia a questão política para dentro do seu texto de forma séria, seríssima. Atuando aqui, talvez como o narrador sucateiro proposto por Gagnebin a partir de Walter Benjamin. Ideia que foi desenvolvida na página 142 da tese, do narrador como aquele que recolhe os pedaços do que a história oficial não faz questão de lembrar, e dá voz e lugar aos que desapareceram brutalmente. Por mais risível que alguns trechos do livro A Obscena Senhora D, (2001) possam ser, inevitavelmente uma seriedade trágica e de ar irrespirável é apresentada no texto. Em segundo lugar, é apontar essa fronteira aberta entre realidade e ficção, aqui a realidade inserida no texto, onde a ficção ensaia sair do mutismo diante da catástrofe. A realidade com seu aspecto já suficientemente alucinatório é unida ao despedaçamento de Hillé, a personagem, que testemunha esse estar aqui como ela Figura 5. Andrea Fricke Duarte, 2013, Anotações Torturas no Paraguai II, fotografia digital. 11,3 cm x 15 cm mesma qualifica - “o que foi a vida? uma aventura obscena, 55 Mas e o risível? Em o A Obscena Senhora D, ele aparece assim: Olhe senhora D, não pode se trancar assim, a morte é coisa que não se pode dar jeito, né, o senhor Ehud ficaria triste lhe vendo assim, tá morto né, a morte vem pra todos, a senhora também podia colaborar com a vizinhança né, essas caras que a senhora anda pondo quando resolve abrir a janela assustam minhas crianças, ai ai senhora D não faz assim agora, isso é coisa de mulher desavergonhada, ai que é isso madona, tá mostrando as vergonhas pra mim, ai ó Antônia, ó Tunico, só quis dar o pão pra ela e olha como ela ficou, tá pelada, ai gente, embirutou, credo nossa senhora, é caso de polícia essa mulher quem te mandou, Luzia, entrar na casa da mulher, hen, quem te mandou? Se ela ficou pelada ta na casa dela, volta para casa mulher, que pão que nada, não tá vendo que o demo tomou conta da mulher? porca, exibida cadela, ainda bem que é só no pardiero dela que mostra as vergonhas é nada, e as caretonas que exibe na janela, alguém tem o direito de assustar osotro assim? he he Luzia, teu traseiro também assusta muita gente (HILST, 2001a, p.28) O risível surge como uma vertigem – seu marido Ehud está morto. Hillé, a personagem está reclusa em casa, nua, tentando compreender a vida, a morte, o corpo. O contato com o outro, com a vizinhança é sempre hostil. Ao mesmo tempo tudo beira ao absurdo. Podemos rir disto? No artigo Humor e suspensão: oscilação entre o peso e a leveza em Hilda Hilst 28, analisei o aspecto do humor em Hilda, reparando que o que move a piada é justamente uma momento de suspensão de uma angústia. Segundo Daniel 28 DUARTE, A. F. ; SOUSA, E. L. A. Humor e suspensão: oscilação entre o peso e a leveza em Hilda Hilst. Psicanálise & Barroco em Revista, v. 9, 2011, p. 1-10. 56 Kupermann (2005, p.22), em seu texto Perder a vida, mas na piada, a ambiguidade é um traço fundamental de toda piada, no qual o humor “parece tanto apontar para uma extrema vitalidade, quanto para uma extrema mortificação, fazendo uma oscilação entre a vida e a morte”. Esse apontamento traz algo que é próprio da escrita hilstiana, uma oscilação quase frenética de posições, ora demasiado trágicas, quando diz, por exemplo: desde sempre a alma em vaziez, buscava nomes, tateava cantos, vincos, acariciava dobras, quem sabe se nos frisos, nas torçuras, no fundo das calças nos nós, nos visíveis cotidianos, no ínfimo absurdo, nos mínimos, um dia a luz, o entender de todos nós o destino, um dia vou compreender, Ehud (HILST, 2001a, p.17) Para em seguida, na continuação do texto, uma ironia fina, um quê de cômico, quase mortífero, risível, dependendo do leitor: Compreender o quê? Isso de vida e morte, esses porquês Escute Senhora D, se ao invés desses tratos com o divino, desses luxos do pensamento, tu me fizesses um café, hen? (HILST, 2001a, p.18) Ou também quando esse traço oscilatório aparece condensado, um espaço de tensão, mantendo uma linha tênue, fio de navalha que modula o peso: 57 Ah ela não é certa não, tá pirada da bola, e isso pega, tu não lembra que meu marido pifô quando não pude fazer aquele bacalhau tu não lembra? começô berrando cadê o bacalhau mulher e eu dizendo porra Juvêncio que bacalhau? Porque não tinha bacalhau, madona, aqui em casa, aí eu dizia te acalma a gente vai buscar, que é isso Juvêncio, e pois é, espumô, babô, caiu duro. e meu avô que se escondeu de todos derepente porque achava que era um morango e ia ser chupado. Isso pega. E o Joca que enfio o dedo no cu da criança do Zitinho dizendo que lá era a boca de Deus. virge nossa e a pretinha, cês não lembra? qual? aquela que era preta e se atirô no cal, tô dizendo que pega credo qual? pois a única preta aqui da vila que ficou branca ahnnn, aquela, mas aquela não tava louca não, queria zarpá mesmo pro outro lado virge tá todo mundo mal, ontem também senti uns troço aqui por dentro tu precisa é metê, Dia Dez não me chama de Dia Dez, que tu sabe que eu não gosto. por que hen pai chamam ele de Dia Dez? porque ele grita pra mulher todo dia: hoje não, só dia dez por que pai? A muié qué metê, menino, e ele só mete de cabeça fresca, no dia do pagamento dele: dia dez cala boca, nhola pai, tu sabe qual é o cúmulo da paciência? não, idiotinha, qual é? É cagá na gaiola e espera a bosta canta. que cara, pai, que cara que tu faz pra mim, eu não pedi pra nascê, tu é que me fez, e passarinho que come pedra sabe o cu que tem. (HILST, 2001a, p.63-65) 58 O fenômeno humorístico estaria caracterizado neste limiar existente entre aparentes contradições, revelando a ambivalência e o paradoxo como próprios do tragicômico, em que se manifesta a incômoda proximidade entre a angústia e o riso, diz Kupermann (2005, p.28). Naquele artigo, minha hipótese era de que o recurso do humor aparecia como uma possibilidade de transmitir um pouco do horror que Hilda sentia frente à existência, sem por isso desistir dela. Como na crônica escrita para o Correio Popular de Campinas, do dia 03 de maio de 1993, frente à miséria humana, ela propõe o E.G.E (Esquadrão Geriátrico de Extermínio): O poeta pode ser violento. A maior parte das vezes contra si mesmo. Um tiro no peito, gás, veneno, um tiro na boca, como fez Hemingway, que também foi poeta em O Velho e o Mar; Maiakóvski, um tiro no peito; Sylvia Plath, gás de cozinha; Ana Cristina César, um salto pelos ares; etc etc etc. ‘Os delicados preferem morrer’, dizia Drummond. Mas esta modesta articulista, sobretudo poeta, diante das denúncias feitas pela revista Veja, todos aqueles poços perfurados em prol de uma única pessoa ou em prol de amiguelhos de sua excelência, presidente da Câmara, senhor Inocêncio (a indústria da seca), e o outro com seu lindo carro às custas de gaze e esparadrapo... Credo, gente, quando você vê televisão ou in loco o povão famélico, desdentado, mirrado... Um amigo meu foi para o Ceará e passou os dias chorando! As crianças todas tortas, todos pedindo comida sem parar... e 500 toneladas de farinha apodrecendo... e montes de feijão desviados para uma só pessoa... (um parênteses, porque meu coração de poeta pede a forca, o fuzilamento, cadeia, cadeia para aqueles que se locupletam à custa da miséria absoluta, da dor, da doença). Gente, eu já estou uma fúria e para ficar mais calma proponho algumas coisas mais sutis, por exemplo: o Esquadrão Geriátrico de Extermínio, a sigla óbvia seria EGE. Arregimentaríamos várias senhoras da terceira idade, eu inclusive, lógico, e com nossas bengalinhas em ponta, uma ponta-estilete besuntada de curare (alguns jovens recrutas amigos viajariam até os Txucarramãe ou os Kranhacarore para consegui-lo) nos comícios, nos palanques, 59 nas Câmaras, no Senado, espetaríamos as perniciosas nádegas ou o distinto buraco malcheiroso desses vilões, nós, velhinhas misturadas às massas, e assim ninguém nos notaria, como ninguém nunca nota a velhice. Nossas vidas ficariam dilatadas de significado, ó que beleza espetar bundões assassinos, nós faceiras matadoras de monstros! (HILST, 1998, p.36) E onde a questão: “Como estar no mundo sem precisar se adequar a ele e assim produzir uma outra espécie de sobra que desassossegue o sujeito, impelindo-o a reconfigurar o contorno do existente?” (SOUSA, 2007b, p.23). Problema que não sabemos bem ao certo como responder. Mas escuto outra vez, com atenção, a saída que Hilda Hilst escolheu: o humor. Em uma crônica de jornal do dia 13 de setembro de 1993, Hilda escreve: “ Uma das coisas que eu mais admiro em alguém é o humor. Nada a ver com a boçalidade. Alguns me pedem crônicas sérias. Gente... o que fui de séria nos meus textos nestes 43 anos de escritora!” (HILST, 1998, p.62). A passagem ao recurso do humor, como uma ferramenta que Hilda Hilst em determinado momento passa a fazer uso mais deliberado, cumpre pelo menos para a escritora uma importante função. Em Freud, encontramos uma similaridade de opinião. Em seu texto sobre o Humor, de 1927, ele caracteriza o humor como um “dom precioso e raro” e inicia o texto definindo qual havia sido sua busca no texto anterior Os chistes e sua relação com o inconsciente, texto de 1905, escrito vinte e dois anos antes. Seu objetivo tinha sido descobrir a fonte do prazer que se obtém do humor e pode demonstrar, diz ele que a produção do prazer humorístico surge de uma economia de gasto em relação ao sentimento. Freud nesse texto faz-se algumas perguntas, dentre elas, referindo-se ao humorista: “Qual é a dinâmica de sua adoção da ‘atitude humorista’?” 60 Para em seguida fazer uma convocação ao seu leitor: “já é hora de nos familiarizarmos com algumas características do humor”. Quais seriam elas então? Para Freud há algo de liberador no humor, mas também, qualquer coisa de grandeza e elevação. Há um triunfo do narcisismo, na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego. O ego se recusa a ser afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste, em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses traumas para ele não passam de ocasiões para se obter prazer. (FREUD, 1987-1989, p.166) (grifos meus) Freud reforça este último aspecto, sendo o elemento essencial do humor. A piada que Freud utiliza para falar disso é a do criminoso condenado à morte, levado à forca na segunda-feira exclama: “bem, a semana está começando otimamente”. Diante da situação de ser levado à morte, a única maneira do ego conseguir assumir alguma autoria, algum poder sobre o imponderável é fazer troça, de sua própria condição, assumindo certa crueldade consigo mesmo, diz Tania Rivera (2005, p.50) “implícita em seu oferecimento, com esta frase, à morte”. Mas há o ouvinte da piada, sem o qual essa talvez não pudesse ser proferida, e, desse modo, diz Rivera, ocorre uma denúncia ao “espectador/ouvinte da cena macabra e perturbadora, da crueldade, sem poupar-lhe o violento lembrete de que um dia a sua morte também ocorrerá – sem que o mundo pare por isso”. A operação de transmissão de um imponderável, que coloca em cena certa crueldade consigo mesmo, ao rir de um destino implacável como a pena de morte, soa muito próximo do tom humorístico utilizado por Hilda Hilst. Há algo muito mortífero presente em todo seu texto; como um fio de navalha, o riso surge dessa oscilação que vai tanto de “uma extrema vitalidade, quanto para uma extrema mortificação, fazendo uma oscilação entre a vida e a morte”. Uma das hipóteses da tese é de que haveria uma 61 mudança de posição de Hilda Hilst que fica circunscrita pelo lançamento da escrita pornográfica, quando ela se sente livre para fracassar. E nessa espécie de desistência, haveria uma mudança na apresentação e uso do humor. Adentrando a trilogia como um modo de encarar a vida de forma mais leve. Mas eis que duvidamos agora desta hipótese. O risível se acentua, mas também o horror está presente. Algo do formato se modificou. Tenho a impressão que ainda não compreendi bem o que se alterou nessa passagem. Por isso escrevo e me pergunto. Foi um sentimento de Hilda Hilst que mudou em relação à literatura. Mas de que modo isso aparece em sua obra? Em entrevista, “Amavisse o último livro sério da escritora”, dada ao Correio Popular e publicada neste jornal no dia 07 de maio de 1989, Hilda dá uma indicação de como podemos compreender essa possível mudança de posição: Correio Popular: Através da pornografia, você tem buscado seu caminho de salvação, no resgate do contato com o público? HH: Quando você chega num limite extremo, você procura alguns caminhos de salvação. Muitos autores classificam vários caminhos. O alcoolismo é um deles. O outro é o caminho da santidade, mas já está tarde demais para se entregar o bagaço a Deus. A santidade... é bom quando se começa cedo. É uma nostalgia do homem, a santidade, mas é dificílimo. E o outro caminho, impressionante, é o riso, apesar de parecer patético, mas é um dos caminhos da salvação. Chegou uma determinada hora que comecei a ver que tinha trabalhado quarenta anos – eu comecei a escrever com dezoito, publiquei meu primeiro livro aos vinte – e vi que realmente não tinha dado certo. Todo homem de alguma forma quer ter mais importância. Isso significa ter mais vida (...). (DINIZ, 2013, p.103-104) 62 Tenho a impressão de que o risível aparece na trilogia erótica de forma muito mais solta, como uma depravação da linguagem, um desvario entre a bestagem (palavra recorrente em HH no período) e o absurdo. Isso corresponde à declaração da escritora na mesma entrevista29 citada acima: “Bossa-pornografia não deverá ser um livro para se levar a sério. Amavisse foi meu último livro publicado no Brasil para ser levado a sério. Só espero que não resolvam encontrar implicações hegelianas ou metafísicas nos meus textos pornográficos”. (DINIZ, 2013, p.103). Não só pela data, 1989, mas também pelo título dado, Bossa-pornografia, reconhecemos um momento em que a pornografia ainda estava em preparação, pois foi um título abandonado depois pela escritora. Também a indicação de HH de que não se deve procurar ali questões metafísicas, nesse período, para Hilda, isso foi abandonado. Quanto ao risível da trilogia, escolho o trecho Pequenas sugestões e receitas de Espanto-Tédio para senhores e donas de casa, que aparece em meio a narrativa de Contos D’Escárno/Textos Grotescos, com quinze receitas especialíssimas. Algumas delas: I Pegue uma cenoura. Dê uns tapinhas para que ela fique mais rosadinha (porque essa que você pegou era uma pálida cenoura). Aí diga: cenoura, tu me lembras uma certa tarde, uma certa loira, quando meu nabo, num fiasco, emurcheceu de vez. Se tua mulher te encontrar na cozinha com a cenoura na mão, dizendo essas coisas, apenas diga: que bonita é a cenoura, né bem? III Colha um pé de couve e dois repolhos. Embrulhe-os. Faça as malas e atravesse a fronteira. Tá na hora. 29 “Amavisse o último livro sério da escritora”, dada ao Correio Popular e publicada neste jornal no dia 07 de maio de 1989. 63 VI Coloque duas alcachofras cruas dentro de uma vasilha com água fria. Fique ali esperando as folhas de alcachofra se soltarem e medite sobre a tua condição de ser humano mortal e deteriorável. Quando enfim todas as folhas estiverem sobrenadando, tome um banho, porque, convenhamos, há quantos dias que você está aí? XIII Se você quer se matar porque o país está podre, e você quase, pegue uma pedrinha de cânfora e uma lata de caviar e coloque ao lado do seu revólver. Em seguida, coloque a pedrinha embaixo da língua e olhe fixamente para a lata de caviar. Só então engatilhe o revólver. (É bom partir com olorosas e elegantes lembranças. Atenção: não dê um tiro na boca porque a pedrinha de cânfora se estilhaça). (HILST, 2008, pp.48-53) A leitura que faço do humor nas obras de HH então é a de que ele cumpre uma função política em dois aspectos – tem um caráter transgressor quando ele parece revelar ou colocar em xeque a crença ao interrogar o pensamento teológico até a vertigem. E, desse modo, faz aparecer uma fragilidade no discurso religioso que tem uma forte influência na organização do funcionamento social, com a sua moral prescritiva. O aspecto político de HH, talvez possa ser pensando numa nova apresentação do Divino, na qual os princípios de absorção - ventre, e a criação relacionada ao processo digestivo, identificados por Bahktin como expressão da cultura popular através da degradação do realismo grotesco, não só blasfemem a divindade. O que pode estar também em causa nesta operação realizada por Hilda Hilst, é uma tentativa de criar uma imagem dessa divindade que ela sente passar na experiência corporal. A obscenidade aqui aparece como um excesso de luz, uma luz que fere, uma iluminação excessiva do mistério? 64 Pensar nas proposições : Lucidez - luz + acidez - luz + aridez O segundo aspecto político do humor se dá na função que o riso e o risível cumprem, de suspensão temporária da ordem das coisas do mundo. Aspecto estudado por Bahktin a partir do carnaval, e que em HH aparece no seu projeto de abandono da seriedade, possibilitando à escritora a criação de uma nova maneira de se relacionar com a escrita. O carnaval da Idade Média e do Renascimento, seu princípio cômico, reside em ter-se afastado de qualquer dogmatismo religioso e estar incorporado à esfera particular da vida cotidiana. “Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval pela sua própria natureza existe para todo o povo” (BAHKTIN, 1989, p.6). Havia um caráter popular, o riso carnavalesco, festivo era antes um “patrimônio do povo” escreve Bakhtin: (...) não é portanto um riso isolado, uma reação individual diante de um ou outro fato. Todos riem, o riso é geral; Em segundo lugar é universal, atinge a todas as coisas e pessoas, o mundo inteiro parece cômico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo; por último, esse riso é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente. Uma qualidade importante do riso na festa popular é o que escarnece dos próprios burladores. O povo não se exclui no mundo em evolução. Também ele se sente incompleto; também ele renasce e se renova com a morte. Essa é uma das diferenças 65 essenciais que separam o riso festivo popular do riso puramente satírico da época moderna. O autor satírico que apenas emprega o humor negativo, coloca-se fora do objeto aludido e opõe-se a ele; isso destrói a integridade do aspecto cômico do mundo, e então o risível (negativo|) torna-se um fenômeno particular. Ao contrário do riso popular ambivalente expressa uma opinião sobre um mundo em plena evolução no qual estão incluídos os que riem. (BAHKTIN, 1989, p.10) (grifos meus) Escarnio: [Dev. De escarnir.]. S.m. 1. V. zombaria. 2. Menosprezo, desprezo, desdém (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1975 p.552. Outra importante característica do grotesco que Bakhtin (1989, p.9) vai ressaltar será de incorporar nesta festa popular, neste formato de zombaria, a experimentação do caráter transgressivo das normas sociais: “ao contrário da festa oficial onde as distinções hierárquicas destacavam-se intencionalmente (cada personagem apresentava-se com as insígnias dos seus títulos, graus e funções, com a finalidade de consagração da desigualdade)”, o carnaval, ao contrário, reinava uma forma especial de contato livre e familiar entre os indivíduos normalmente separados na vida cotidiana pelas barreiras intransponíveis de sua condição, fortuna, seu emprego, idade e situação familiar. Essa festa do carnaval era o “triunfo de espécie de liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus”. Podemos pensar nessa suspensão como uma abertura no espaço social de experimentação de uma radicalidade de poder ser outro, uma espécie de não- eu. A abertura para o exercício da alteridade dentro de âmbito do si-mesmo, mas ao mesmo tempo compartilhada pela festividade 66 carnavalesca. O riso carnavalesco nos diz Bakhtin é antes de mais nada um riso festivo. Festivo por quê? Principalmente pelo aspecto transgressor do riso. A partir deste risível uma operação muito importante é efetuada. Acontece uma espécie de transição, de mobilidade possível naquilo que há de mais estático na sociedade – na sua estruturação. O riso opera como uma possibilidade de desmontar a estrutura e revelar o mal-estar que ela provoca na cultura e efetivamente na vida das pessoas. É preciso compreender que todas essas considerações acerca da construção do realismo grotesco como um princípio ativo do risível na cultura popular dos quais reconhecemos os traços na literatura de HH, eles delineiam também o aspecto político do humor, em dois momentos. Primeiro quando se faz uso do rebaixamento – a degradação como um princípio ativo do riso popular – ali se cumpre uma função política muito utilizada por HH – de blasfemar contra a divindade, questionando diretamente a instituição religiosa e na maneira como ela legisla sobre o corpo do homem. Aqui poderíamos nomear a obscenidade de que se utiliza Hilda como um ato político, a partir desse aspecto humorístico. É um traço marcante na escrita hilstiana. O segundo aspecto político do humor se dá na função que o riso cumpre, de suspensão temporária das hierarquias sociais, a festividade carnavalesca oportunizando uma “segunda vida” do povo. No contexto da cultura popular, o objetivo final do riso significava vencer o medo naquela sociedade. Quando Hilda adentra a literatura pornográfica, a marca que o texto de Ernest Becker fez nela, passados pouco mais de dez anos da leitura do livro A negação da morte (1974), ainda está lá martelando no texto. Mas se apresenta numa mudança sutil, como um passo adiante que HH deu ao desistir da seriedade. Como se com essa desistência, esse riso permitisse que HH perdesse o medo, pelo menos no momento em que escreve a trilogia. Vemos uma passagem da qual ela se apropria de maneira magistral: converte o principal motivo de angústia e medo do humano, a consciência da morte e o pensamento teológico, em um dispositivo para o 67 risível. O homem, produto da criação divina tem que se deparar com o fato de ser mortal, ser um “deus-verme-que-caga”, segundo Becker, e para permanecer parcela do divino, só pode ser convertido em fezes da divindade – “Grande intestino orai por nós” ((HILST, 2009, p.79). Hilda Hilst nos dá a medida, o ponto de navalha. Talvez, ela tenha encontrado onde fazer “o corte certo, entre o colapso e a estrutura”, segundo Edson Sousa, a partir do artista Gordon-Matta-Clark30 corte provocado pela arte ou pela literatura que tenham “Em 1974, o artista e arquiteto Gordon Matta-Clark ocupa uma casa abandonada na cidade de Niágara nos Estados Unidos e a secciona em 9 partes, abrindo com estes cortes uma reflexão sobre moradia e espaço urbano. Esta casa foi construída em torno de um canal que desde 1920 até 1960 recebeu mais de 20 mil toneladas de resíduos químicos tóxicos depositados pelo exército norte-americano e por uma grande indústria química. A empresa recobriu o terreno e doou à cidade que, por sua vez, ofereceu a área para um grande conjunto habitacional. Foram muitos os casos de cont aminação irreversível e o trabalho de Matta-Clark busca fazer um corte nesta história criminosa marcada pela negligência e o desrespeito do poder público com seus cidadãos.” SOUSA, E.L.A., GEMELLI, I. Psico, Revista de Psicologia. Porto Alegre: PUCRS, v. 43, n. 4, out./dez. 2012, p. 437-441. Disponível em: < http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistapsico/article/download/9618/8502> “ Gordon Matta-Clark, artista norte-americano (1943-1978), vai nos propor um princípio norteador que será o fio condutor de minha (Edson Sousa) reflexão “Making the right cut some between the supports and collapse” (Fazendo o corte certo em algum lugar entre os suportes e o col apso). Seu trabalho e sua reflexão tentam fazer resistência de forma crítica à voracidade das formas que aniquilam espaços de convivência, de desejo, de solidariedade e de reconhecimento da diferença. Dedicou grande parte de suas ações a fazer verdadeiras intervenções cirúrgicas em prédios abandonados mostrando o quanto a anatomia de uma construção revela espaços de esquecimento e abandono. Matta-Clark cria, portanto, incisões metamórficas no espaço que poderiam ser lidas como uma dietética da vida, revelando assim excessos, abandonos, violências e contaminações. Propõe o conceito de anarquitetura, uma estratégia de revelar os vazios das estruturas se aproximando, em muito, do que Pierre Fedida define em seu livro “Ausência” como “o vazio da metáfora e o tempo do intervalo”. Seus cortes são, portanto, atos clínicos e interpretativos em um lógica de desfazer a forma para que uma outra estrutura possa ali advir. Como ele diz em uma entrevista “Quando alguma coisa alcança uma imagem, uma definição, começo a perder o interesse. O que realmente me excita é o ato de desfazer.” O corpo doente da cidade dialoga de perto com nossos corpos enfermos e mostrarei neste ponto um diálogo possível a partir de alguns pressupostos da psicopatologia, entre a arquitetura becktiana (sobretudo em seu romance O Inominável ) e as intervenções de Matta-Clark. O corpo enfermo dos personagens de Beckett são, portanto, como os prédios em ruínas de Matta-Clark. Apesar das mordaças eles insistem em falar. Como escreve Samuel 30 68 a capacidade de reposicionar os sujeitos diante do mundo, a partir do efeito de uma obra. Aqui vemos a potência e o vigor da escritora, em pleno período das obras pornográficas e seu estado de espírito, capaz de fazer uma crítica fundamental à cultura, mas, ao mesmo tempo, com uma leveza, que só o exercício do humor, a partir de uma desistência, pôde lhe trazer: CRONISTA: FILHO DE CRONOS COM ISHTAR “Uma das coisas que eu mais admiro em alguém é o humor. Nada a ver com a boçalidade. Alguns me pedem crônicas sérias. Gente... o que fui de séria nos meus textos nestes 43 anos de escritora! Tão séria que meu querido amigo, jornalista e crítico, José Castelo, escreveu que eu provoco a fuga insana, isto é, o cara começa a me ler e sai correndo para o funil do infinito. Tão séria que provoco o pânico. E nestas crônicas o que eu menos desejo é provocar o pânico... Já pensaram, a cada segundafeira, os leitores atirando o jornal pelos ares e ensandecendo? Já pensaram o que é isso de falar a sério e dizer por exemplo: que é isso, meu chapa, nós vamos todos morrer e apodrecer (ainda bem que não é apodrecer e morrer, o lá de cima foi bondoso nesse pedaço), tu não é ninguém, meu chapa, tudo é transitório, a casa que cê pensa que é sua vai ser logo mais de alguém, tu é hóspede do tempo, negão, já pensou como vai ser o não-ser? Tá chateado por quê? Tu também vai envelhecer, ficar gling-glang e morrer... (há belas exceções como o Bertrand Russell fazendo comício aos 90, mas tu não é o Bertrand Russel). Até o Sartre, gente, inteligentíssimo, ficou na velhice se mijando nas calças e fazendo papelão... Se todo mundo pensasse seriamente no absurdo que é tudo isso de ser feito de carne, mas também olhar as estrelas, de ter um Beckett no final de seu romance: “... ali onde estou, não sei, não saberei nunca, no silêncio não se sabe, é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar.” SOUSA, Edson Luiz André. A voracidade das formas. V Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e XI Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental 2012. Disponível em: http://www.psicopatologiafundamental.org/pagina-conferencias-508 Acesso em: 20/03/2015 69 rosto, mas também ter aquele buraco fético, se todo mundo tivesse o hábito de pensar haveria mais piedade, mais solidariedade, ais compaixão e amor. Mas quem é que vocês conhecem que pensa? As mães que nos colocaram no Planeta pensaram? Claro que não. Na hora de revirá os óinho ninguém pensa. Só seria justificável parir se o teu pimpolho fosse imortal e vivesse à mão direita Daquele. Mas o teu pimpolho também vai morrer e apodrecer não sem antes passar por todos os horrores do planeta. Ta jogando fora o jornal, benzinho? Então vamos brincar de inventar uma nova semântica. Semântica – Antologia do Sêmen Solipsismo – Psiquismo solitário Hipérbole – Bola Grande Xenofobia – Fobia de Xenos Ligadura – Liga das Senhoras Católicas Ânulo – Filete colocado sob o bocel da cornija do capitel dórico Bocel – Corruptela de Boçal Ânus – Pronúncia errada de Anús (Aves da família dos cuculídeos) Ku – Lua em Finlandês Cou (Pronuncia-se Cu) – Pescoço em francês Proclamas – Alvoroço de almas Misantropia – Entropia do Méson Mi Democracia – Poder do Demo Paradoxo – Oxiúros em estado de repouso (parado) República – Ré muito manjada Bom dia, leitor! Tá contente? Contente – Filho do ente do heidegger (informe-se) com Cohn-Bendit (informe-se). (domingo, 13 de setembro de 1993) (HILST, 1998, p.62-63). 70 Seu humor se completa nessa brincadeira com as palavras, de forma solta, quase pueril, uma brincadeira e uma simplicidade de fácil acesso, ao associar os significados pela sua sonoridade, inventando novos sentidos, cômicos pela oposição do sentido que a palavra tem na língua portuguesa, para o inventado pela autora, como vemos em Democracia, sugerido pela autora como Poder do demo, ou ainda Ligadura, como a Liga das Senhoras Católicas. Brincadeira que nos faz rir, mas é uma brincadeira inteligente e que nos faz pensar, e se refere à história, a traços da cultura, como o catolicismo e o seu ordenamento sobre o papel da mulher na sociedade. Um comentário extra-ordinário: minha última caixa de livros finalmente chegou hoje, dia 19 de março de 2015, com as edições originais de Hilda Hilst, o que me permitiu incluir o texto acima. Meus livros queridos estão de volta. E a caixa que eu imaginava extraviada apareceu misteriosamente no dia 20 de fevereiro, numa sexta-feira, com meus preciosos livros e todas as minhas anotações pessoais. Profanações, do Agamben, A Sobrevivência dos Vagalumes e A imagem sobrevivente do Didi-huberman. E a História da Sexualidade vol.2, do Foucault, livros indispensáveis à escrita da tese. Foi como ter sido restituída de um pedaço do meu corpo que estava faltando. Com a chegada dos últimos livros de Hilda, talvez eu possa incluir ainda, imagens que julgo necessárias ao texto da tese. As quatro caixas de livros foram postadas no dia 06 de outubro de 2014 em Paris. Cascos e Carícias e O caderno rosa de Lori Lamby levaram cinco meses e treze dias para chegar. Uma longa viagem. 71 --- -._.._ 101O<>Qt-- --- . e Desen hos 3- Imagem do arquivo, 2013. F. 1gura 6. Andrea Fn eke 0ua "' em Fotografia digital. 11,3 em x 15 72 IV. CAIR, QUEDAR – ENSAIO SOBRE O PESO SOBRE QUEDAS Na dissertação de mestrado, eu propunha a leitura de HH como uma experiência desabamento e tentava me colocar no lugar daquele que escreve e por isso vacila, oscila, fica sem chão: O texto que desaba – o ser que desaba? Experiências do desabamento e da queda. Do cair e do caído; Produzir arte, escrita, literatura, mesmo no experimento da queda.31 Ao mesmo em tempo que a leitura hilstiana operava uma espécie de queda, de chegar perto de um indizível daquela experiência de leitura, o lançar-se na escrita operava outra. A repetição dessa queda se dá mais uma vez, coloca em cena talvez um limite, uma espécie de rompimento que o estilo de escrita de HH tenta operar. Em determinado momento da pesquisa, ao fim da primeira leitura do Caderno rosa de Lori Lamby, em abril de 2012, deparei-me com um efeito de leitura muito negativo e parecia impossível me mover diante daquelas imagens. Há um comentário meu a respeito da impressão desta leitura que diz: A leitura não teve nada de risível e leve, pelo contrário, me provocou muito mal-estar, até mesmo alguns sintomas físicos como aversão, enjoo, repulsa. Neste livro, a narradora tem apenas oito anos e conta suas aventuras sexuais com divertimento e 31 Texto do projeto de qualificação de mestrado; 73 alegria. Penso que Hilda Hilst transgrediu o limite cultural da lei do incesto. O mais terrível para mim foi me deparar com a narração de gozo como se fosse o gozo do pedófilo, embora o narrador seja a criança, Lori. Hilda Hilst resolve a sua transgressão, no fim do livro, desmentindo o relato de Lori, como se todo o caderno rosa fosse apenas uma grande fantasiação. Quando os pais leem o diário, enlouquecem e vão parar no hospício. O que era para ser risível, como pretendia Hilda, não se efetiva. O mal já foi feito ao leitor, o fim do livro não desfaz o 32 horror do incesto. Durante minha última ida aos arquivos, em abril de 2013, quando separei o material referente ao período da escrita pornográfica, encontrei duas cartas escritas para Hilda comentando a leitura do Caderno rosa, e ali, uma amiga bem próxima da escritora fez uma leitura bastante aproximada desta minha primeira impressão do livro e se desculpava com HH por causa disso; uma segunda carta, de um conhecido mais distante de HH; esse, muito preocupado, pede insistentemente que a escritora pense e pese com responsabilidade pelas palavras que está publicando. Foi a partir destas duas cartas que compreendi que sim, que esta minha primeira leitura, considerada por alguns como equivocada, também faz parte dos efeitos que esta obra provoca, ou pode provocar. Num primeiro momento senti necessidade de me proteger da transgressão do incesto que o texto apresentava. E quase me paralisou. Como se ele fosse mais pesado do que eu poderia suportar. Na segunda leitura do livro, após a ida aos arquivos e após um aporte maior de leituras a respeito do período, consegui estar numa outra posição. Houve uma transição de estados, passei por algum enfrentamento, e senti chegar num estado limite, grave. Neste ponto que nomeio como uma espécie de queda, de cair num Texto apresentado para qualificação do projeto do Trabalho de Conclusão do Curso de Artes Visuais/ UFRGS - Erótico em cena ou obs-cena? Qualificado em 16/08/2012. 32 74 abismo e de onde foi preciso algum trabalho para que eu enquanto leitora e pesquisadora pudesse me reposicionar frente ao texto hilstiano. A este efeito de leitura que é compartilhado por alguns leitores, insisto em nomeá-lo como uma experiência de queda, às vezes, o enfrentamento de um abismo provocado pelo encontro com a força que a escrita de Hilda Hilst possui. Este soco com que HH quer acordar o leitor tem uma medida central de desestabilização. Um texto do qual “ninguém sairá ileso” alertava Caio Fernando Abreu na edição de 1982 do livro A obscena senhora D33, e que será tensionado aqui na perspectiva que desejava HH, de acordar seu leitor, através da noção do despertar e do obsceno. Para Edson Sousa (2014, p.788), “a arte coloca em cena, necessariamente, uma transgressão”, no sentido de que ela é capaz de interrogar a “norma instituída provocando uma expansão da metáfora como se mostrasse as fissuras possíveis da lei”. E sua potência está justamente nessa força capaz de fazer titubear o chão sob nossos pés: A obra de arte instaura desordem, funda um fora de lugar, cria uma espécie de colapso no sujeito, lembrando que o desafio do artista e (também do psicanalista) é de encontrar o corte certo entre estrutura e colapso. Inspiro-me aqui em uma das proposições artísticas de Gordon Matta-Clark (2010). É o movimento de acionar desordem que desarma e revela a violência da estagnação da imagem. Neste ponto, o ato de criação cumpre a função da navalha de Buñuel que vemos na abertura do seu clássico filme O cão andaluz. A transgressão da arte destitui o ideal perverso de capturar, de forma meduzante, os sujeitos anulando sua condição desejante. Neste sentido, a arte abriria condições para que o desejo pudesse se recompor e se lançar novamente. (SOUSA, 2014, p.789) 33 “Na edição de A obscena senhora D, de 1982, ele (Caio Fernando Abreu) deixa um recado certeiro na orelha do livros: “Ninguém sairá ileso” PUR CENO, Sonia. Estante. In. PÉCORA, Alcir (org.). Por que ler Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2010, (p.112). 75 Essa proposição de Sousa (2014), do ato criativo cumprindo uma função de navalha, de algo que pode perfurar e/ou cortar, implica um movimento que reage a toda estagnação, percebendo a violência no polo do instituído, e que faz ecoar a frase de Walter Benjamin (2006, p.515): “que as coisas continuem assim, eis a catástrofe”. A transgressão da arte funciona então como um instrumento político que desestabiliza, interroga as formas já gastas do viver34 – “contudo, estes pequenos rasgos, ao contrário do que parece, não destituem a lei do seu lugar de fundamento, mas a interroga em sua consistência” (SOUSA, 2014, p.789). A arte, aqui, a literatura de HH, opera um atravessamento ou uma perfuração do instituído, interrogando sua consistência. Em Hilda Hilst, sua escrita para mim, é algo que toca o corpo, produz uma perturbação durante a sua passagem. A este abalroamento, que advém do encontro, parece estar inserida a possibilidade latente de toda experiência do choque – uma alteração. Um enfrentamento da radicalidade de tudo o que é não eu, que produz estranheza ou instaura uma breve descontinuidade na certeza identitária que ficcionamos o tempo inteiro como uma garantia de estabilidade: “A transgressão dentro desta perspectiva do ato artístico busca instaurar novos valores e o faz no embate com o campo do instituído.” (SOUSA, 2014, p.789). A potência deste abalo está ainda, numa espécie de intervalo gerado por esse instante de perturbação e descontinuidade, uma vez que soubermos suportá-lo, um momento informe, alguma coisa acontece ou pode acontecer. Tecendo uma espécie de elogio ao informe, Sousa (2014) vai reparar nesse instante de passagem de uma forma a outra como aquilo que permite indagar o espaço das condições de possibilidade do ato criativo: SOUSA, E.L.A. A burocratização do amanhã: utopia e ato criativo . In: Porto Arte: Revista de Pós-Graduação em Artes Visuais do Curso de Artes da UFRGS, Porto Alegre, UFRGS, v. 24, 2008, p. 41-51. 34 76 Temos de procurar mapear o intervalo entre as formas, desvendar a dissecação da forma, abrindo espaço para uma reflexão sobre o informe. O informe não é o avesso da forma, mas, ao contrário, a afirma, mesmo que em uma condição de provisoriedade, instabilidade, suspensão e incompletude. A arte como transgressão aciona o informe como uma força capaz de mudar posições. Entre o que pode e o que não pode surge o desenho de uma interdição. A interdição adquire aqui uma função propulsora e positiva, na medida em que nos permite indagar sobre as condições de possibilidade do ato de criação. É este ato de criação que funciona como uma espécie de estilete, recortando o espaço de totalidade e nos mostrando os territórios que interessam à arte. A arte busca os espaços do enigma. (SOUSA, 2014, p.791) Bas Jan Ader – artista que experimenta a queda várias vezes e registra estas ações. Em Fall I 35 , um vídeo de 24 segundos gravado em 1970, em Los Angeles, vemos Bas Jan Ader aparentemente imóvel sobre o telhado de uma casa, quando ocorre uma inclinação para a esquerda e então o artista, junto com uma cadeira onde estava sentado, começam a tombar de cima do telhado levando mais alguns segundos para chegar ao chão. Em Fall II 36 aparece o enquadramento de uma paisagem sobre um lago na cidade de Amsterdã, quando surge o artista de bicicleta e adentra o lago. Ambos filmes são de 1970. Em Broken Fall (organic) 37, de 1971, Bas Jan Ader está segurando-se no galho de uma árvore que tem uma altura relativa, que dá duas vezes e um pouquinho mais a altura do artista. No vídeo o artista, que se segura pelas mãos 35 36 37 Fall I, Los Angeles, Bas Jan Ader, 16mm, duration: 24 sec, 1970, Mary Sue Ader-Andersen. Fall II, Amsterdam, Bas Jan Ader, 16mm, 19 sec, 1970, Mary Sue Ader-Andersen. Broken fall (organic), Bas Jan Ader, 16mm, duration 1 min 44 sec, 1971, Mary Sue Ader-Andersen. 77 apenas, começa se dirigir para a extremidade mais fina do galho, em direção oposta a do tronco. No chão há um pequeno riacho; a ação parece durar o tempo que o artista consegue se manter sustentando o peso de seu corpo, até que ele cai de um dos galhos. Ainda aconteceram as ações Nigth Fall 38, nas quais o artista, num ambiente fechado e iluminado por dois pontos de luz no chão, se encontra no meio do ambiente atrás de uma grande pedra, que ele pega com as mãos, com certo esforço, a eleva no espaço, a apoia no ombro e a deixa cair sobre o primeiro foco de luz; em seguida repete a ação, que finaliza quando a pedra torna a cair no segundo foco de luz, imergindo a imagem na escuridão. E a ação Broken Fall (geomtretic)39, na qual o artista numa passagem ao ar livre, num dia de vento que inclina as árvores para a esquerda, o artista em pé começa a pender o corpo na direção do vento, tendo uma pequena estrutura de madeira ao seu lado. O corpo ensaia esse movimento pendular que testa a gravidade do corpo e o equilíbrio, até que o corpo rompe a gravidade e vai ao chão. Para quem está a buscar, o chão oferece um limite, porque o corpo não o atravessa. Estes últimos dois trabalhos são de 1971. São trabalhos que repetem a queda do próprio corpo, e podem trazer a dimensão de fragilidade, desse corpo que testa o espaço, que tem a si próprio como medida, o seu peso. Corpo que se faz cair de novo, e de novo. 38 Nightfall, Bas Jan Ader, 16mm, 4 min 16 sec, 1971, Mary Sue Ader-Andersen. Todos os trabalhos citados estão disponíveis no site oficial do artista: Acesso em 16/08/2013. 39 Broken fall (geometric), Bas Jan Ader, 16mm, duration 1 min 49 sec, 1971, Mary Sue Ader-Andersen. 78 “Também fazia cair objectos pesados, como tijolos, sobre outros objectos mais pessoais (um vaso com flores, um bolo de aniversário, lâmpadas...), cuja fragilidade lembrava a do ser humano vulnerável a forças inelutáveis, de que a gravidade é uma metáfora”. (FELIX, 2006)40 Às vezes, a procura de um limite pode levar a uma radicalidade, uma queda também pode ser definitiva. Sua última performance, “In search of the miraculous” levou o artista à morte. Dela, temos um breve vídeo como testemunha, mais um documentário “Aqui é sempre outro lugar (Here is Always somewhere else”) 41 que indaga essa imersão no vazio, que efetivou o verdadeiro desaparecimento do artista. “In Search of the Miraculous”, jornada em três fases de Los Angeles a Amsterdã, não chegou ao fim. O veleiro de 4 metros em que Ader largara sozinho de Cape Cod em julho de 1975, para atravessar o Atlântico com destino à Grã-Bretanha, foi encontrado dez meses depois, vagando com a proa 40 41 Disponível em: Acesso em 16/03/2013. Film about the life and work of Bas Jan Ader, who in 1975 disappeared under mysterious circumstances at sea in what would have been the smallest boat ever to cross the Atlantic. As seen through the eyes of fellow emigrant filmmaker Rene Daalder, the picture becomes a sweeping overview of contemporary art films as well as an epic saga of the transformative powers of the ocean. Featuring artists Tacita Dean, Rodney Graham, Marcel Broodthaers, Ger van Elk, Charles Ray, Wim T. Schippers, Chris Burden, Fiona Tan, Pipilotti Rist and many others. Filme sobre a vida e a obra de Bas Jan Ader, que desapareceu em 1975 em circunstâncias misteriosas no mar, na qual teria sido o menor barco a atravessar o Atlântico. Como pode ser visto através dos olhos do companheiro cineasta emigrante Rene Daalder, a imagem torna-se uma visão abrangente de filmes de arte contemporânea, bem como uma saga épica dos poderes transformadores do oceano. Apresentando os artistas Tacita Dean, Rodney Graham, Marcel Broodthaers, Ger van Elk, Charles Ray, Wim T. Schippers, Chris Burden, Fiona Tan, Pipilotti Rist e muitos outros (Tradução livre). 79 completamente submersa, e sem sinais do corpo do piloto. Aos 33 anos, “o homem que ia ao encontro da gravidade” (FELIX, 2006) desapareceu. Figura 7 e 8: Bas Jan Ader, Fall I, 1970. Fonte: http://www.basjanader.com/ 80 Figura 9 e 10: Bas Jan Ader,Fali li,1970. Fonte: http://www.basjanader.com/ 81 Figura 11 e 12: Bas Jan Ader, Broken Fall (orgânic), 1971. Fonte: http://www.basjanader.com/ 82 Figura 13 e 14: Bas Jan Ader, Broken Fall (geometric), 1971. Fonte: http://www.basjanader.com/ 83 Figura 15 e 16: Bas Jan Ader, NightFall, 1971. Fonte: http://www.basjanader.com/ 84 Figura 17 e 18: Bas Jan Ader, NightFall, 1971. Fonte: http://www.basjanader.com/ 85 Fig. 19 e 20: Bas Jan Ader, “In search of the miraculous” (1975) No dia 30 de agosto de 2012, perto de casa, eu brincava de correr na calçada com minha filha Isabela, que tinha então seis anos. Corríamos de mãos dadas. Eu corri um pouco mais rápido do que ela e, em algum momento, virei o corpo em sua direção para olhá-la, continuávamos de mãos dadas. Foi neste instante que eu tropecei e cai. O efeito da queda, meu corpo virado de modo incomum, resultou em esfolar a palma da mão direita e em uma fratura em três lugares do meu tornozelo esquerdo42. Isabela ralou “Arrebentei o rosto e a boca no tronco da árvore. espatifei o para-brisa, raspei a mão direita pelo nariz, é indiferente se estava inteiro se alguém podia se aproximar e dizer alguma coisa como: você está bem ou você não parece ter índole alemã.” (LIMA, Ricardo Manoel de. Extrato de ‘Dois’, Quando todos os acidentes acontecem. In: Geografia Aérea, Rio de Janeiro: 7Letras, 2014, p.85. 42 86 o joelho que sangrou um pouco. Acabei passando por uma cirurgia, fiquei hospitalizada por uma semana e depois fiquei imobilizada por três meses. Minha queda esteve associada à fratura do corpo e à imobilidade. E depois a reaprender a andar. Talvez, este último tenha sido o momento mais difícil dessa experiência. Escrevi no trabalho de conclusão do curso de Artes Visuais, que apresentei nos meses seguintes – Emergências e passagens: rasgos, palavras - no dia 10 de janeiro de 2013 – “Fraturei meu tornozelo esse semestre (...). Carrego uma, não, três fraturas no corpo agora, e, em cada vez que escrevi aqui neste trabalho a palavra fratura, era de um novo jeito que eu a pensava. Acidentar-se pode ser um tropeço na calçada, uma brincadeira de criança, um jeito novo de chegar ao chão” (2013, p.75). A fratura de imagens e palavras havia sido um procedimento utilizado na realização de alguns trabalhos apresentados na escrita do TCC. Hoje as cicatrizes e os sete parafusos que ficaram me constituem. Estilha. [Do esp. astilha.] S.f. 1. Lasca de madeira; cavaco. 2. Fragmento, pedaço, estilhaço: “Era um terror e uma agitação por toda a cidade, ao ouvirem o ribombar da artilharia, e ao verem no ar a trajetória de fogo das bombardas, que vinham sem piedade rebentar em e s t i l h a s no meio da gente” (Oliveira Martins, História de Portugal, I, p. 277). Estilhaçar. V. t. d. 1. Partir em estilhaços; despedaçar. 2. Manifestar, demonstrar com ruído. 3 Fazer-se em estilhaços; despedaçar-se. Estilhaço. [De estilha + aço.] S.m. 1. Fragmento de qualquer objeto despedaçado e projetado com violência: e s t i l h a ç o de granada; e s t i l h a ç o de pedra. 2. Pedaço, fragmento, lasca.43 43 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1975, p. 581-582. 87 Tenho precisado de muita coragem para começar. “Com medo, que é uma espécie de coragem para o mundo ”, escreve Manoel Ricardo de Lima44 e afirmado por Rosely Sayão45 “Só quem tem medo consegue construir coragem”, me lembrando da composição deste par de contrários intimamente relacionados. Lendo Foucault em A história da sexualidade 2 ou o uso dos prazeres (2003), na introdução do livro ele testemunha algo sobre o pesquisar que me fez pausar a leitura: É a curiosidade – em todo caso, a única espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? (E segue): Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou refletir. Talvez me digam que esses jogos consigo mesmo tem de permanecer nos bastidores; e que no máximo eles fazem parte desses trabalhos de preparação que desaparecem por si só a partir do momento em que produzem seus efeitos. Mas o que é filosofar hoje em dia – quero dizer a atividade filosófica – senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe? (FOUCAULT, 2003, p.13) 44 45 O elefante. In: LIMA, Manoel Ricardo de. Jogo de Varetas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012 ,p.17. Disponível no site: < https://www.youtube.com/watch?v=IuGJ06mtdOM> Acesso em 29/01/2014.. A história da educação dos filhos. Palestra proferida para o programa de televisão Café Filosófico, exibido em março de 2013, pela TV Cultura de São Paulo. 88 Minha satisfação é grande ao ouvir estas palavras confortantes de Foucault. Confortantes, porque a maneira como me coloco a pensar o pensamento entra em contato com uma profusão de linguagens, são linguagens diversas que me auxiliam a por em marcha as interrogações que me inquietam. E também pelo profundo desacerto de não saber previamente o como. E pela primeira afirmação, a primeira justificativa que dei ao escolher pesquisar a trilogia erótica e/ou pornográfica de Hilda Hilst: “porque é difícil para mim”. Acredito que foi uma escolha ética naquele momento em que encerrava a dissertação de mestrado: escolher aquilo que me desestabiliza, que me perturba e diante da qual, certamente, não poderei permanecer a mesma. Esta tocante reflexão de Foucault me remete sobre de que lugar se pode falar quando se está diante de um desafio. Desafio que implica certo delineamento de uma ética do pesquisar, ao estar diante de algo que necessariamente vai deslocar o pesquisador, vai confrontá-lo com o que Foucault chamou no seu livro As Palavras e as Coisas (1985) o encontro com o impensado: Na experiência moderna, a possibilidade de instaurar o homem num saber, ou o simples aparecimento desta figura nova no campo da épistemê implicam um imperativo que importuna interiormente o pensamento; (...) o essencial é que o pensamento seja, por si mesmo e na espessura do seu trabalho, ao mesmo tempo saber e modificação do que ele sabe, reflexão e transformação do modo de ser (grifos meus) daquilo sobre o que ele reflete. Ele põe em movimento, desde logo, aquilo que toca: não pode descobrir o impensado, ou ao menos ir em sua direção, sem logo aproximá-lo de si – ou talvez ainda, sem afastá-lo sem que o ser do homem, em todo o caso, uma vez que ele se desenrola nessa distância, não se ache, por isso mesmo, alterado. (FOUCAULT, 1985, p.343). 89 Portanto, para Foucault essa dimensão do pesquisar envolve uma desestabilização radical que é colocar-se à disposição do movimento do pensamento. Há um poema de HH, em que ela traz um verbo pouco usual, deliquescer, e que me remete a essa proposição de Foucault, e parece estar próximo dessas operações e movimentos que HH procurava na sua poética. Aqui um trecho do poema: Te descobres vivo sob um jugo novo. Te ordenas. Eu deliquescida: amor, amor Antes do muro, antes da terra, devo Devo gritar a minha palavra, uma encantada Ilharga Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar Digo a mim mesma. Mas ao teu lado me Estendo Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza. (HILST, 2001b, p.70) Deliquescente: [do latim deliquescente]Adj.1. Sujeito a deliquescência. 2. Fig. Que se desfaz; desagregado, decadente: moral deliquescente; estilo deliquescente] A alteração de si mesmo proposta por Foucault como o movimento mesmo do pensamento, inclui a noção de desfazimento, e nos encontramos num campo movediço, onde alguma coisa acontece, talvez a dissolução das fronteiras entre sujeito e objeto, e a instauração de um lugar em que constituições e desfazimentos se operam ao mesmo tempo. A instância da letra para Lacan, assim 90 como o desejo, são marcados por operações negativas. Isso significa dizer que estas operações se dão de forma paradoxal, de modo que, ao instaurar um sujeito, elas ao mesmo tempo cavam nele um vazio, marcando uma espécie de divisão constitutiva ao processo de criação. A ideia de algo que se constitui pelo próprio desfazimento, ou por esta condição permanente de estar em trânsito é fundamental a esta pesquisa. Assim como é necessário pensar a criação junto da destruição. E a própria noção de erotismo como aprovação da vida até na própria morte, proposto por Bataille46. Dois principais desejos orientaram esta pesquisa: delimitar melhor as questões que podem potencializar um maior entendimento do que estava em questão para HH quando ela passa a escrever depois de se sentir “livre para fracassar” e o que esta operação pode testemunhar. E também investigar as noções de positividade e de negatividade que concernem ao pensamento, à relação entre elas e o que implicam estas colocações. Isto particularmente me interessa por que diz respeito à busca que se infiltrava na pesquisa anterior, quando o acento colocado por ela, dizia principalmente sobre a questão da linguagem. Sobre o que é possível dizer quando necessariamente somos falados por uma estrutura que nos antecede. E aqui acirra a questão colocada por Foucault - senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Essa é uma das grandes questões que me coloco, sempre próxima às questões colocadas pelo texto hilstiano, que também se debruçam sobre a língua quando escreve em Fluxo (1970, p.46), por exemplo: “que merdafestança de linguagem”. E se pergunta: “Como explicar o vir a ser de um ser que só se sabe no AGORA, ai como explicar o DEPOIS de um ser que só se sabe no instante?” (Ibidem, p.45). “Do erotismo pode-se dizer que é a aprovação da vida até na própria morte. Rigorosamente falando, esta fórmula não é uma definição, mas penso que ela dá o sentido do erotismo melhor do que qualquer outra.“ In: BATAILLE, Georges. O Erotismo. Lisboa: Edições Antígona, 1988, p.11. 46 91 Quem leva este acento, esta interrogação aguda sobre a linguagem também é o filósofo italiano Giorgio Agamben na abertura de seu livro Infância e História – destruição da experiência e origem da história (2012). Faz isso com a radicalidade que o tema exige, de enfrentar um trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento, como sugeriu Foucault, na medida em que reconhece na língua o que ele vai chamar de Experimentum Linguae: Agamben (2012) expõe seu pensamento, centrado na experiência de linguagem, no qual ele cita Foucault, uma experiência radical que implica o “supremamente dizível, a coisa da linguagem” (AGAMBEN, 2012, p.11). A partir de certa performatividade de seu texto, quando ele traz consigo uma medida negativa dentro da escrita ao evocar o livro que não foi escrito – o “jamais escrito” o “impossível”, colocando em cena essa dimensão própria de algo que habita a linguagem. Ele quer apresentar um experimentun linguae e começa por este texto jamais escrito, mas que tem um nome: La voce umana [A voz humana] chamado ainda: Etica, ovvero della voce [Ética, ou da voz]. Neste texto jamais escrito, mas que tem um, não, dois nomes, ele coloca uma pergunta sobre a voz humana. Possuiria o humano uma voz que lhe fosse própria? E caso exista “é esta a voz da linguagem?” Me remete a pergunta de Lacan no Seminário I: quem fala? 47 Cito Agamben: Uma experiência que se sustém somente na linguagem, um experimentum linguae no sentido próprio do termo, em que aquilo que se tem experiência é a própria língua. (...) Um experimentum linguae deste tipo é a infância, no qual os limites da linguagem não são buscados fora da linguagem, na direção de sua referência, mas em uma experiência da linguagem enquanto tal, na sua pura autorreferencialidade. Mas o que 47 seminário - Livro 1 - Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996, p.54. “Pode isso nos permitir responder a questão quem fala? E, portanto, saber o que quer dizer a reconquista, o reencontro do inconsciente?” LACAN, J. O 92 pode ser uma tal experiência? Como é possível ter experiência não de objeto, mas da própria linguagem? (...) Nos livros escritos e naqueles não escritos, eu não quis pensar obstinadamente senão uma única coisa: o que significa “existe linguagem”, o que significa “eu falo”? (AGAMBEN, 2012, p.11-12) Aqui não posso deixar de pensar na passagem da linguagem clássica para a linguagem moderna, no qual Foucault vai situar no seu livro As palavras e as coisas (1985), justamente o momento em que a linguagem perde seu caráter instrumental para apresentar o próprio vazio que habita a linguagem. No capítulo IX – O homem e seus duplos, Foucault vai reiterar sobre esta mudança de posição, ou melhor, sobre a passagem do pensamento clássico para o pensamento moderno, no qual ele vê em Nietzsche o primeiro a aproximar a “tarefa filosófica da reflexão radical sobre a linguagem” (1985, p.321). Tarefa pela qual o escritor Mallarmé48 se lança: “no seu balbucio, envolve todos os nossos esforços hoje para reconduzir à coação de uma unidade talvez impossível o ser fragmentado da linguagem” (Ibidem, p.321). Nietzsche formulará e manterá a pergunta “Quem fala?” e, segundo Foucault, respondida por Mallarmé: “dizendo que o que fala é, em sua solidão, em sua vibração frágil, em seu nada, a própria palavra – não o sentido da palavra, mas o seu ser enigmático e precário” (Ibidem, p.322). Para mim se torna fundamental compreender essa virada da linguagem a partir do século XIX, quando a ordem representacional do mundo desaparece, diz Foucault, e acontece essa 48 declaração trágica da impossibilidade de atingir o estabelecido no livro. Marco histórico do poema Um jogo de dados (Um coup de dès) (1897) é um longo poema de versos livres e tipografia revolucionária que constitui a 93 passagem da linguagem clássica que representava os seres, para a situação moderna, em que não há mais que a palavra “em sua vibração frágil”, repetindo as palavras de Mallarmé. Quando Agamben escreve que “a singularidade que a linguagem deve significar não é um inefável, mas o supremamente dizível, a coisa da linguagem” (2012, p.11) e, mais adiante, “aquele que realiza o experimentum linguae deve, portanto, arriscar-se numa dimensão perfeitamente vazia, no qual não existe diante de si senão a pura exterioridade da língua” (Ibidem, p.13), parece que é desta nova percepção/condição que a linguagem assume, de ficar ecoando a pura materialidade do signo, certo vazio que é colocado em cena. Esta pura exterioridade da língua, condiz com a ruptura radical entre as palavras e as coisas, ruptura que Agamben (2012) situa entre “a língua e a fala (ou antes, nos termos de Benveniste, entre semiótico e semântico) que permanece o incontornável com o qual toda a linguagem deve confrontar-se.” Mostrando que entre “essas duas dimensões não existe passagem” (Ibidem, p.14). Giorgio Agamben (2012, p.13) situa sua busca por uma infância como uma aposta numa experiência de linguagem que não seja esta “onde a palavra se quebra em nossos lábios”, “mas da qual se possa, ao menos até certo ponto, indicar a lógica e existir o lugar e a fórmula.” Para o filósofo, há uma obviedade no intervalo formado entre a língua e a fala, que é a condição mesma para o advento do conhecimento: um ser que já fosse sempre falante, e estivesse sempre em uma língua indivisa, ele seria desde sempre e imediatamente unido a sua natureza linguística e não encontraria 94 em nenhuma parte uma descontinuidade e uma diferença nas quais algo como um saber e uma história poderiam produzir-se. (AGAMBEN, 2012, p.14). Esta descontinuidade constitutiva na experiência da linguagem parece ter sido buscada por Agamben no seu texto jamais escrito, no qual procurava situar a voz humana. Sua busca: “o lugar desta experiência transcendental era procurado antes na diferença entre a voz e a linguagem, entre phoné e logos, na medida em que essa diferença abre o espaço próprio da ética” (Ibidem, p.15). Agamben traz Aristóteles, pois, quase que inadvertidamente coloca o problema e tenta interpretá-lo. (...) Aristóteles define a significação linguística remetendo a voz aos pathemas* na alma e às coisas, não fala simplesmente de phoné, mas usa a expressão ta em te phoné, aquilo que existe na voz. Que coisa existe na voz humana, que articula a passagem do animal ao lógos, da natureza à pólis? É conhecida a resposta de Aristóteles: o que articula a voz são os gramata, as letras. (...) Voz passível de ser escrita. (...) Como signo, e contemporaneamente , elemento constitutivo da voz, o gramma vem assim a assumir o estatuto paradoxal de um índice de si mesmo. Deste modo, a letra é aquilo que ocupa desde sempre o hiato entre phoné e logos, a estrutura original de significação. * (do gr. Páthema ‘afecção, sofrimento’) (AGAMBEN, 2012, p.15 e16). Então surpreendentemente Agamben escreve: “a hipótese do livro não escrito (grifo meu) era completamente outra”: O hiato entre voz e linguagem (como aquele entre língua e discurso, potência e ato) pode abrir o espaço da ética e da pólis precisamente porque não existe um árthros, uma articulação entre phoné e logos. A voz jamais se inscreveu na linguagem e o gramma (...). O espaço entre voz e logos é um espaço vazio. (...) A primeira consequência desse experimentum linguae é, portanto, uma revisão radical da ideia de 95 um Comum. O simples conteúdo do experimentum é que existe linguagem, e isto não podemos representar (AGAMBEN, 2012, p.16). Ao afirmar a necessidade de se repensar a ideia de um Comum, outra vez, me remete a Foucault (1985), dessa vez, a reflexão do seu texto de abertura do livro As palavras e as coisas, quando o autor dá um destaque especial ao papel linguagem. Será a partir de uma imagem retirada de um texto de Jorge Luis Borges, um texto que enumera animais sem qualquer familiaridade uns com os outros, e que por essa razão produz um estranhamento: o texto de Borges cita “uma certa enciclopédia chinesa”, onde está escrito: “ ‘os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas”. Ver reunidos seres tão distintos numa mesma série provocará riso, escreve Foucault, mas, em seguida, o mesmo riso alerta para uma perturbação do pensamento. Foucault observa que esta enumeração absurda põe em cena uma impossibilidade do pensamento, uma vez que nós não conseguimos alcançar um sentido lógico na reunião destes seres, sugerida por Borges. Então, ele pergunta: de que impossibilidade se trata? E, em seguida, responde que “o que transgride toda imaginação, todo pensamento possível, é simplesmente a série alfabética (a, b, c, d) que liga a todas as outras cada uma dessas categorias” (FOUCAULT, 1985, prefácio). Mas não é ainda, a “extravagância de encontros insólitos”, o que desperta certo mal-estar, mas a ordem, a ordenação desses seres que impede o pensamento. Uma sistematização de coisas que não estariam unidas a não ser pela própria vontade de sistemátizá-los. Para Foucault (Ibidem, prefácio), “a monstruosidade que Borges faz circular na sua enumeração consiste, ao contrário, em que o 96 próprio espaço comum dos encontros se acha arruinado49.” O impossível, vai dizer Foucault (Ibidem, prefácio), “não é a vizinhança das coisas, é o lugar mesmo onde elas poderiam avizinhar-se.” “Os animais “i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo (...) onde poderiam eles jamais se encontrar, a não ser na voz imaterial que pronuncia sua enumeração, a não ser a página que a transcreve? Onde eles poderiam se justapor, senão no não-lugar da linguagem?” Dois pontos aqui se entrecruzam, primeiro o fato da linguagem se apresentar então como um não-lugar, e, por esta sua condição, dar espaço a algo em que “o próprio espaço comum dos seres foi arruinado”. Penso que é deste Comum que pode estar se referindo a Agamben (2012, p.16), quando diz (repito): “A primeira consequência desse experimentum linguae é, portanto, uma revisão radical da ideia de um Comum. O simples conteúdo do experimentum é que existe linguagem, e isto não podemos representar”. O fato de que a linguagem existe sem que possamos representar isso, quando está rompida a relação entre as palavras e as coisas, o balbulcio que emerge, sem significar, vai dizer então de uma dimensão da palavra como uma ação, como um ato. Para Wittgenstein, um “maravilhamento” com o mundo ao dizer “a expressão justa na língua para o milagre da existência do mundo, mesmo não sendo nenhuma proposição na língua, é a existência da própria linguagem” (WITTGENSTEIN. Apud. AGAMBEN, 2012, p.17). Isto, ao final de sua apresentação, provoca um questionamento em Agamben: Se a expressão mais adequada para a maravilha da existência do mundo é a existência de linguagem, qual será então a expressão justa para a existência da linguagem? 49 Grifo meu para o texto presente. 97 A única resposta possível a esta pergunta é: a vida humana enquanto ethos, enquanto vida ética. Buscar a pólis e a oikia que estejam à altura desta comunidade vazia e impresumível, está é a tarefa infantil da humanidade que vem. (AGAMBEN, 2012, p.17) Assim, Agamben encerra seu texto de abertura de Infância e História – Destruição da experiência e origem da história. E me faz pensar sobre esse ato de linguagem, sobre um acontecimento próprio a linguagem, e que, a partir de agora, numa perspectiva de linguagem moderna – do vazio dos signos, de um espaço comum arruinado, remete a uma radicalidade que torna cada palavra um lugar de exercício da ética. E talvez de um maravilhoso, ao pensar sobre a possibilidade de se criar uma linguagem ser também, a possibilidade de se criar uma forma de vida.50 “A linguagem não é uma imagem de maneira alguma, ela é...uma ferramenta, um instrumento...Há muitas imagens do mundo, jogos de linguagem, diferentes formas de vida, diferentes formas de usar palavras (...) Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo.” Filme: Wittgenstein (1993). Direção: Derek Jarman. Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, 75minutos. [Transcrição] 50 98 c..-e. s;_ :;: )v""\_ '\.10 (' : .-1 (&_ 0 J CO-'\ vY\.<:""1 1-'4>< v& 1 +u.M-c1 k, l:-=i Figura 26. Andrea Frieke Duarte,Cíldo- Do+ e do -leve, 2012. Fotografia digital. 17,08 em x 22,78 em 119 V. EXERCÍCIOS PARA UMA IDEIA OU SOBRE O ENSAIAR O MÉTODO – ESTUDOS DA GRAVIDADE Para Lezama Lima (1996) escritor e poeta cubano, no seu livro e capítulo de mesmo nome, A dignidade da poesia, propõe a união da poieses ao ethos: “Buscar o modo em que criação e conduta possam fazer parte da corrente maior da linguagem?” (1996, p.180) circunscrevendo que talvez haja “um ethos na criação, uma conduta dentro da poesia” no qual conduta e queda se unem e a poesia “tem que se aproximar ou cerzir o espaço da queda. Daí a gravidade ou a exigência de sua impossibilidade.” Poieses, segundo Paul Valéry, significa – ação de fazer algo, e ethos, palavra grega que na sua origem tem o sentido de morada, e mais tarde originou a palavra ética. Está relacionada à conduta, aqui o sentido que Lezama Lima dá a ela. Mas pensar o poético como um lugar de ação e ao mesmo tempo de morada, trazendo consigo algo próprio da poesia, que seria este ‘cerzir o espaço da queda’, quando, para o autor, há na poesia um ponto órfico, “essa respiração que se move entre o corpo e um espaço como o da aranha de formar âmbito e feitiço” (Ibidem, p.181). Afirmando ainda que “a primeira aparição da poesia é uma dimensão, um extenso, uma quantidade secreta, não percebida pelos sentidos” (Ibidem, p.181). A poesia como algo que não conseguimos apreender de todo, o ponto órfico – referência a Orfeu, diz-se dos dogmas e mistérios atribuídos a Orfeu53. Mas também que porta uma revelação, um átimo de luz junto a um átimo de sombra: “Em toda a substância poética, parece haver um ponto de dobradiça, como um sinal aderente a um caudal que primeiro aclarou e fez possível a existência do oculto detrás de sua dobradiça” (Ibidem, p.180). Essa demarcação de um ponto de obscuridade que habita toda a poesia nomeia, de certa forma, esse ímpeto de buscar um pensamento que se dá também 53 (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1975 p.1005. 120 pela proposição de imagens. Um ponto de dobradiça, onde claridade e obscuridade talvez se comuniquem e onde encontro uma possibilidade de conversa com os estudos da gravidade, que em determinado momento se fizeram necessários para pensar a trilogia erótica de Hilda Hilst. O peso e a leveza que percorreram comigo estas obras, denunciando a maneira como me relaciono com elas. E algo muito bonito que Lezama Lima propõe, ou que ele percebe como um ethos na criação, uma conduta dentro da poesia: Assim o alento, o mundo respirante feito substância, que aferra seus contornos, não por amor de contenção, mas pela unha que naquela massa abandona as pressões, as contrações, pode ser percorrido e empunhado por aquilo que poderíamos chamar de sutilezas para render o difícil, em que o que transcorre pelo feitiço desse espaço percebe seus atos impelidos como se estivesse numa região onde a superabundância anula o contra-sentido e a relação antecedente motivação, e consequente conduta, gesto ou signo. (LEZAMA LIMA, 1996, p.180) (grifos meus) A dignidade da poesia vem empunhada de “aquilo que poderíamos chamar de sutilezas para render o difícil”: proponho então os Estudos da gravidade – ensaios sobre o peso e a leveza, mais os ensaios de escritura poética – Sobre o despertar, e as imagens dos filmes e algumas que propus e produzi, como sutilezas para tentar render esse difícil para mim, a trilogia da Hilda Hilst. E deixandome tocar pelas obras como o poema que “expõe-se ao acidente": “Esse ‘demônio do coração’ nunca se junta, antes se perde (delírio ou mania) expõe-se à sorte, ou deixa-se, antes, despedaçar por aquilo que vem sobre ele". (DERRIDA, 2006, p. 115 e 116). Talvez 121 como aquele que se coloca na condição de sofrer a experiência54. João Frayze-Pereira, em seu livro Arte, dor – inquietudes entre estética e psicanálise (2006), propõe o pensar psicanaliticamente não apenas como “mero instrumento de investigação da cultura” e tampouco uma “rede de noções aptas a atribuir sentido ao sensível” (2009, p. 23 e 24), mas em algo que implica antes: “escutar as questões singulares e comoventes, isto é, ambíguas e por isso mesmo perturbadoras daquele que sofre. Portanto, daquele que vive. Nesse processo cabe ao psicanalista dar forma à dor do inarticulado que, por seu próprio modo de ser, excede toda a tentativa de representação” (Ibidem, p.24). A escuta aparece então como uma ferramenta capaz de dar forma à dor do inarticulado – como que “uma silenciosa abertura ao que não é nós e que em nós faz dizer ” (Ibidem, p.24). Isso que nos toca, que vem de fora e nos assalta, implica uma abertura, observa Frayze-Pereira, como elaborou mais tarde em artigo55 uma reflexão sobre o lugar da psicanálise e sua relação com a crítica de arte, ao problematizar o lugar da psicanálise quando se põem a pensar as obras e os artistas. Deste encontro, diz ele que a psicanálise, “ao se guiar pela demanda das obras, abre-se ao trabalho dos artistas para atingir uma via de acesso a si própria como saber que se revela uma experiência interminável da interrogação.” (Ibidem, p.2) Desde este lugar então, não de querer explicar as obras, mas de se deixar perturbar por elas, acolhendo o que este autor vai chamar de uma abertura radical ao caráter indeterminado e ambíguo que configura as obras artísticas. E, deste modo, diz ele, “é justamente essa abertura radical que também marca o trabalho reflexivo do psicanalista como iniciação aos segredos do mundo”. 54 55 Ver página 140 da tese. FRAYZE-PEREIRA, João A. Arte Contemporânea, Crítica de Arte e Psicanálise: Louise Bourgeois, um desafio interdisciplinar, Cienc. Cult. vol.61 n.2. São Paulo: Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, 2009. Acessado em: 20/03/2015 122 NOTAS OU ANOTAÇÕES SOBRE O MÉTODO: EXERCÍCIO PARA UM PENSAMENTO EM QUEDA/VOO LIVRE: Ocorreu-me que esta escrita pode ser o começo de um desenho. O começo de uma ideia. O pensamento que procura imagens, ou tenta formular algumas. Escrita que deseja ‘acontecer-se’. Quer trazer consigo a sensação de uma tessitura, um cozimento, porque nela interessa inserir o tempo. Escrita como constituição de espaços-tempos. Aqui na linha do texto me faço acontecer em escrita, e o que vou reunir nas próximas xxx linhas será o gerúndio da ação: acontecendo. Ocorre-me também pensar que esta escrita pode ser a tentativa de contar uma história. A história de um encontro infinito, do leitor com o seu texto. Do escritor com seu livro. Mas aqui, da reunião de quatro anos de dedicação a um determinado período da escrita de Hilda Hilst. Então, escrevo: Penso nos tempos que se acumulam, como penso como formar uma imagem sobre o acúmulo. (17h, 20/12/2014) Acho que descobri uma solução formal para o trabalho pela qual eu possa trazer acúmulo e sopreposição de tempos: dois textos – oscilação entre o peso e a leveza, exercícios de gravidade. Onde encontro a mistura de Hilda comigo, e por um momento me permitir perder as fronteiras entre o isso e o aquilo. (20h, 20/12/2014) 123 Dois textos: um impresso sobre papel vegetal/ transparência, outro sobre o papel branco – sulfite normal. Textos sobrepostos, camadas de tempo, estudos. Em algum ponto o texto se cruza – a leveza empresta um pouco de si ao peso e o peso empresta um pouco de si à leveza. Estudos da gravidade. Eu quero um texto plural. Para Adorno que toma o Ensaio como forma, vê ali, uma possibilidade de falar daquilo do que se deseja falar, e que por se constituir como algo que se ensaia, necessariamente, fica desprovido de partir um princípio primeiro assim como não procura chegar a um fim último. Por esse motivo, Adorno chega a caracterizar o Ensaio como um lugar de despropósito, assumindo uma crítica ao discurso filosófico que vai se valer do particular quando “esta obra possa ser usada para exemplificar as categorias universais, ou pelo menos tornar o particular transparente em relação a elas” (2012, p.16). Isso me interessa. Dado que, quando me coloco a pensar a literatura de Hilda Hilst, sei que falo desde um lugar primeiramente de desejo, e, em segundo, a partir da relação que eu estabeleço com a sua obra. Confirmando de certa maneira o modo como Adorno vai caracterizar o Ensaio: “o seu caráter parcial diante do total.” Mas o mais importante apontado pelo filósofo será o lugar conferido por ele à experiência. Vê nela uma maneira autêntica de pensar junto com a história, inserindo a passagem do tempo, logo daquilo que é transitório. Talvez o que se ensaia nesta tese é seguir a indicação de Adorno de introduzir os conceitos “tais como se apresentam”, mas sabendo que eles “só 124 tornam mais precisos por meio das relações que engendram entre si” (2012, p.28). Intenção tateante, de que os conceitos pelos quais passearemos, em algum momento se relacionem, produzam sentido. Sobre o formato de apresentação da tese: escolho a folha A4 paisagem porque vejo nesta forma uma inadequação. Algo que contém um incômodo, que atrapalha o manejo. É grande demais para caber nas mãos. Parece que algo está errado nela, parece um erro mantê-la. Por essa inadequação que essa forma me causa, é motivo mesmo pelo qual resolvo mantê-la. Ela opera como um lembrete de que algo falta para ser completo, um ainda-não tão necessário ao viver. Hilda anota no seu caderno de estudos56, como pode-se ver na imagem abaixo: “O que é o homem político através dos tempos? Capacidade, vontade. Poder xxxxxx (termo incompreensível – misericordioso, talvez) Luxo Cabeça e coração juntos. 56 Caderno 1995-1999 – Arquivos CEDAE. 125 CPFL Figura 27. Andrea Frieke Duarte' HH-13 -Imagem do arqui.vo, 2013. Fotografia digital. 15 em x 20 em 126 VI. SOBRE O DESPERTAR 127 Despertar é antes de tudo uma vontade. 128 I Ele amanheceu de repente. O semicerrar dos olhos abriam devagar a manhã e uma imagem, como se, pela primeira vez, uma manhã no mundo. O corpo despertou lento entre o ar molhado da espera que uma noite deixou e... Ser um despertar no tempo. No escuro. Espiar aos poucos um ponto. Um acaso do tempo. Ser corpo, molhado ao relento. Escuro grilo e ruído úmido. Despertar não parece nem um pouco possível. Experimento o cheiro das coisas deixadas quietas tempo demais. Sentir com a ponta dos dedos o tecido que cobre o corpo. Ter nas mãos um punhado de ar e um bocado grande de escuro. 129 Anatol Rosenfeld escreveu no prefácio de Fluxo-floema (1970), livro que inaugura a prosa ficcional de Hilda Hilst, que o tema da irrupção era fundamental para pensar sobre a poética da escritora. Diz isso a partir de um poema57 escrito por Hilda dedicado a um amigo falecido precocemente, que “o tema da crisálida, do estado intermediário, latente, do vir-a-ser e da irrupção e transcendência é fundamental na obra de Hilda Hilst” (1970, p.12). A crisálida58 é um dos estágios de formação das borboletas, estágio em que a lagarta forma um casulo e se transforma na borboleta. Não sei se Hilda pensava na especificidade deste momento que os biólogos nos contam, de ser esse o momento em que “dentro das crisálidas ocorre o processo de crescimento e diferenciação sexual. As borboletas adultas emergem destas e expandem suas asas para bombear sangue pelas veias. Esta rápida e brusca mudança é chamada metamorfose”59 . Esse ponto, como qualifica-lo? Onde acontece uma mobilidade na imobilidade. Talvez este seja um modo pontual de marcar a escrita hilstiana, e podemos usar palavras “E dentro dele a crisálida amanhece: Ouro primeiro, larva, depois asa Há de romper a pedra, pastor e companheiro.” (HILST, Hilda.” Pequenos Funerais Cantantes ao poeta Carlos Maria de Araújo.” (1967) . In: HILST, Hilda. Poesia: 1959-1979. São Paulo: Quiron Brasília: INL, 1980. 58 http://pt.wikipedia.org/wiki/Cris%C3%A1lida 57 130 que a própria Hilda anotou em um de seus cadernos: imobilidade a galope,60 era o que buscava na composição da personagem Hillé, de seu livro A obscena Senhora D. Cavo buracos e me insiro no tempo, enfio as mãos na terra, afundo os dedos, crio sulcos, sinto cheiro da terra, sujo as mãos. Há muito tempo que não tenho diante de mim. Olhos ou bocas. Então cavo, esforço quase esfolo o corpo na vertigem de fazer marcas, de gravar em superfícies algumas articulações nervosas, um desejo de aceleração de um corpo, ouvir o tambor de um peito, e o ofegar da respiração. O que eu mais gosto é o som do sorriso dele, quando ele pousa o olhar nas coisas oferecidas ao seu olho . Eu penso que presentes devem ser dados ainda bem cedo, para que o despertar seja todo cheio de bonitezas. De alimentar as águas, as almas, as coisas fluídas que não deveriam nunca perder seu rumo, e extinguir-se. Tenho mania de esperar das coisas, uma disposição à felicidade, pode ser que isso seja uma cisma violenta. Às vezes faço coisas assim sem saber, se haveria nome, se antes que eu pudesse me levantar outra vez da cadeira, elas, as coisas recém-feitas jamais perdessem sua validade. Acho que o que eu quero dizer é que em pouco tempo ou muito pouco tempo, segundos, Às vezes eu tenho a impressão que tudo já perdeu a validade ou as suas razões de serem. Pode ser também, que não seja o modo certo de pensar nas coisas, nos feitos, acontecidos do mundo. Cem vezes me levanto da cama. Mas algo está ali naquele instante, e na duração, nos segundos que duram os sons que articulam as letras. O movimento das palavras como elas D. Morosidade e galope. Tingido de agora - anotações de Hilda sobre a composição da personagem em A Obscena senhora D, Hillé, a escritora enumera quatro perguntas a partir deste livro - Pastas 39 e 40 (do arquivo): Fundo Hilda Hilst, localizado no Centro de Documentação Alexandre Eulálio (CEDAE), no IEL – Instituto de Estudos da Linguagem, na Unicamp, em Campinas/SP. 60 131 dançam às vezes pousam de leve sobre as pálpebras. Uma ação feita, sua brevidade, sua insignificância para o mundo. O que conheço do mundo. Não sei da duração do ido. De dias inteiros, de minutos que deitei sobre o corpo dele e ri e brinquei deitada na grama. No sol. Um abraço. Mesmo que eu possa fazer uma lista de coisas que vivi e senti e amei, sem motivo, o paradoxo do que é a lembrança – a ausência, evocação de um ido. O que penso entretanto é nisso que imbui a cena de presença. É o ato de contar que presentifica e que devolve ao ido seu momento, seu segundo momento de plenitude: a narrativa. Através dela se faz cintilar ainda um nome, um jeito de olhar, um movimento do corpo. Entre o acontecimento e a memória do acontecimento há o ato do rememorar. Há um atribuir um outro nascimento, àquilo que se passou. Talvez porque num encontro, no pleno acontecimento há esse lampejo das coisas que estão nascendo, de criação da vida em si mesma. E a memória é a criação de palavras para descrever o acontecimento. A saliência do que estou tentando dizer é que, a própria memoração, e ou a tentativa de, estamos em plena criação outra vez? Talvez tudo vibre vivo pulse, tudo respire ainda, ou. A aventura de aventurar-se por este lugar da palavra liberta, proposta por Clarice61, desperta do sono e põem em movimento coisas sem nome, pois já não tem formas. 61 LISPECTOR, Clarice. Água viva. São Paulo: Círculo do Livro, 1973. 132 II Acreditar pode parecer tolo. Somente os tolos creem. Pois ele acreditava possuir alguma coisa de muito valor. Escrever euforicamente sem ter nenhum propósito do que encontrar um ponto de passagem. Uma fenda, uma abertura. Começa pelo meio de uma grande impossibilidade tomada nas mãos. Foi assim: de súbito ߛ. E eis que tomado por uma grande incompreensão resolveu não ignorar mais algo que insistiu em insistir. Ou depois de certo período de tempo. III Os passos são muito leves. Ela não ouviu ele chegar. Não saber que alguém ou algo está vindo é o que costuma lhe acontecer: não saber. Estou preocupada em encontrar um enredo, uma amarração dos fatos que virão. Quando eu olhei você pela primeira vez eu não reparei em nada especial. Foi depois de algum tempo, dias até, para que alguma coisa se colocasse, se tornasse perceptível. Estou revendo as cenas, eu me lembro que comentei algo sobre o seu texto. Foi isso, numa aula ninguém escutava o que você estava se esforçando para dizer. Mas sem saber o que eu estava fazendo eu simplesmente olhei para você, escutei a voz do seu texto e contei para o seu pequeno coletivo da existência da sua voz. Mas eu não sabia, nada, nunca, não imaginei por um segundo 133 sequer que eu pudesse ficar tão cega por uma única voz. Talvez seja porque há algo de enigmático no que poderia ser tão banal. Certa vez um escritor disse que não se pode entrar no círculo magnético de outro sem isso causar estremecimento. Você pediu que eu não contasse nada a respeito, mas veja, isso não é um problema já que nunca tivemos uma chance. Sequer de nos conhecer. É verdade, eu sei que você pensa que eu vou agora inventar uma história fabulosa. A verdade é que eu tenho bem pouco a dizer. Eu posso dizer que um gato gritou agudamente neste exato instante na minha janela e cheguei a me assustar. Esses gritos que às vezes se estendem e não deixam ninguém dormir. [Silêncio]. Por enquanto foi um grito único e tão irrepetível que parece ter sido absorvido pelo ruído ao fundo. Ruído que me faz lembrar de que eu moro em uma cidade que tem ruas e carros que cruzam as ruas quase sempre, sempre tem um ruído do mundo. IV Você aceitou pela primeira vez. Você não fugiu. E não me deixou a sós. O que é algo inteiramente novo para mim. E eu disse: de repente é tanto, que eu não sei o que fazer com você. Eu realmente fiquei sem saber, logo em seguida, outra vez. Será que isso. É 134 algo novo. Escrever uma história me remete a um escritor que conheci uma vez. Ele não gostava de ser poeta no mundo, mas para ele não era uma escolha. Era quase uma covardia viver com um punhado de palavras das quais ele não podia se desfazer. Aos poucos ele foi assumindo esse jeito de errar todo dia, quando nenhuma palavra basta para dizer daquilo que ele nunca vai dizer. É um homem atormentado esse. Mas ele ri às gargalhadas, ele se torce no chão como uma larva, dá pulos e giros. Ele é pura larva, um estado bruto pronto para implodir o espaço-tempo. E pronto para ser esmagado, surrado. Uma larva branca se contorcendo de tanto rir do vazio absoluto que encarna nos objetos às vezes. Nos objetos que ele usa todos os dias e esquece então que é poeta e que algum dia algum poema foi escrito. V Esquecer é bom. Esquecer um pouco. Não ter mãos, ou corpo, ou pernas. Não saber usar o corpo ou as pernas assim como as palavras. Conheço um bocado delas, mas não sei qual seria a melhor combinação entre elas. Às vezes penso que escrever é só um jeito de esquecer, um jeito de dizer outra coisa, e depois, amontoado de coisas não ditas. 135 VI Descobrir que escrever não tem nenhum valor. Nenhuma serventia, função ou propósito. Que escrever não serve para nada mesmo, mas mesmo assim escrevo e digo que vou amar a vida inteira Marguerite Duras e o seu sinthoma e a sua dor. Eu sei muito pouco sobre as coisas. Eu tenho medo que tudo desapareça, que o rosto se desfaça. Eu tenho medo de estar sempre presa num pedaço de tempo. Inventamos um projeto. Uma engenhoca de continuidade. Não sabemos bem o que continua. Chego a desconfiar que nunca existiu antes e o que surge agora é feito de uma primeira vez tão nova que dá medo de usar. Ele me ofereceu um sim e tive medo de aceitar. Porque era um sim que eu não conhecia. Mas ele foi tão doce e deu passos tão leves na minha direção que eu achei que não faria mal aceitar esse sim tão inesperado. Descobri que tenho medo desse sim apesar de tudo. Tenho medo de ficar sozinha com um GRANDE sim nas mãos e de repente ele ter se transformado em um grande não. Calma! Tenha calma, aceite esse sim. É o medo de me desintegrar. 136 VII Acordo as manhãs Levantei e ainda era escuro, ritual exíguo, esse, que cumpro sob a proteção das estrelas, o chão sempre um pouco úmido, tenho esta tarefa a cada despertar. Eu saio da cama e vou em direção à porta, abro e respiro o ar fresco do noturno, espio as sombras, as quais não distingo bem, silhuetas orgânicas crescem às vezes, envolvem o horizonte como se fechassem de repente todas as portas. Nessa hora me atravessa a garganta um ligeiro terror que pousa e arranca, acelera meu coração, logo de partida. Munido então, dessas certezas da escuridão, sua beleza, seu cheiro frio e a cortante agonia, esforço faço caber na mão, arqueando os dedos em direção às bordas delicadas desse mistério, agito os braços energicamente no ar, sacudindo a rouquidão do mundo, o meu mutismo, e o ponto negro bem no meio da pupila. A noite se agita, tremeluzente, escorre de leve e, por fim, vencida, densa matéria se torna quebradiça, e se esfarela inteira. Faço um último gesto, mais preciso e mais grave e as últimas partículas se vão pelos ares. Deixo o movimento cessar leve e observo novos tons que se formam no horizonte. Começa azul escuro, depois fica azul claro e depois rosa, rosa quase cintilante, pontos fracos de luz brilham novos, eles nascem frescos, trazem consigo o ar molhado, a lembrança no corpo, o noturno em despedida. A cada noite minha sou levado outra vez, e outra vez e outra vez repito este gesto de acordar as manhãs. 137 V' ·- ..... Figura 28. Andrea Frieke Duarte, HH_18 -Imagem do arquivo, 2013. Fotografia digital. 15 em x 20 em 138 VII. ESCUROS Se falarmos de modo imediato sobre o que é imediato vamos nos comportar quase como aqueles romancistas que cobrem suas marionetes de ornamentos baratos, revestindo-as de imitações dos sentimentos de antigamente, e fazem agir as pessoas, que nada mais são do que engrenagens da maquinaria, como se estas ainda conseguissem agir como sujeitos e como se algo dependesse de sua ação. O olhar lançado à vida transformou-se em ideologia, que tenta nos iludir escondendo o fato de que não há mais vida (ADORNO, 1993, p.4). Adorno escreve Mínima Morália em 1944, um ano ainda, antes, do fim da II Guerra Mundial. Ele diz: “De cada ida ao cinema, apesar de todo cuidado e atenção, saio mais estúpido e pior. A própria sociabilidade é participação na injustiça, na medida em que finge ser este mundo morto um mundo no qual ainda podemos conversar uns com os outros, e a palavra solta, sociável, contribui para perpetuar o silêncio, na medida que as concessões feitas ao interlocutor o humilham de novo na pessoa que fala” (1993, p.19). Este sentimento aguçado da impossibilidade das coisas permanecerem em seus lugares no momento crucial em que a guerra acontece me remete a sensação de urgência que Hilda Hilst colocava na sua escrita. Viver com certo terror nos olhos, escrever com a difícil tarefa de não se fechar às imagens e notícias terríveis, mas, ao contrário, se colocar a escrever assumindo uma tarefa árdua de criação, como talvez uma tentativa de iluminar esse escuro. 139 Partir da experiência de uma grande impossibilidade e assumir a tarefa de tornar algo possível dentro de uma medida possível é um material humano que invoca uma medida extrema (qual?). A da sobrevivência (Agamben e Didi-Huberman), e que necessita de endereçamento, escuta. Isso que nos deixa um autor, se dá como um testemunho histórico, e será preciso ouvir seus gritos e ruídos, a fala de bufão e seus impropérios, e mais tarde seus balbucios até o silêncio da sua escrita. O que eleva Hilda Hilst a uma pensadora da cultura é a força que emana de seu texto, que me interroga e, diante da qual, não consigo permanecer inteira. O esfacelamento que vai operando em mim enquanto sua leitora me interroga sempre, às vezes me maltrata. É a este universo de ruptura que a obra me obriga que eu quero oferecer um espaço de pensamento, percorrer uma vez mais os abismos traçados, as questões dilacerantes que atormentavam Hilda e das quais ela nunca se furtava. A escrita desta tese é de certa maneira caminhar no escuro, junto com ele, e tentar dizer disso, da passagem por esta literatura ensaiando modos de dizer de uma experiência. Repetições – cair num abismo, pois a escrita histiana é sempre um choque, por vezes violento, e do qual não se sai ileso. Escrever do parapeito ou do próprio ar que desloca um corpo na queda. Colocar-se em beira de precipício, chocar-se com algo do real. Deste choque percebo em mim a repetição de um gesto: pulverizar, (des)fragmentar, algo entre produzir e recolher pedaços, e que evoca uma imagem guardada da infância, descobrindo tesouros trazidos pelo mar: as conchas. À procura delas, inteiras, encontrava as miúdas, enquanto as maiores apenas pedaços de conchas fraturadas pelo oceano na beira do mar. Sempre que vou ao litoral acabo por recolher do chão esses pedacinhos craquelados ou disformes, delineados pela água salgada e seu movimento incessante. Conchas na maioria das vezes partidas ou esburacadas, muitas vezes, revelando uma história do que já foi um dia, quando vemos naquelas de estrutura espiralada uma lembrança daquele corpo. 140 Pensando sobre este gesto agora, tão comum de catar conchinhas na praia, quando o júbilo da minha infância era a esperança de encontrar uma concha grande e inteira, vejo agora que aquela plenitude era apenas um momento entre tantos outros, no que deve ser a duração de uma concha, seu momento de formação, de crescimento e depois seu lento desfazimento. Parece que no ponto onde estou agora penso no movimento incessante do tempo sobre os corpos, na história que contam ou podem contar. “Sempre vi o mundo de uma forma mágica, eu vivo um estado de comoção contínua, renovada, diante das coisas... É por isso que resolvi viver assim retirada, a “distância”, por medo de as pessoas perceberem a que ponto estou o tempo todo comovida, perturbada.”62 Em seu ensaio O narrador (1936), Walter Benjamin avisa que a figura do narrador não está mais entre nós. Que só podemos acessálo através de uma distância que se afasta cada vez mais rápido, e que a experiência da narração está em extinção. A narrativa caracteriza Benjamin: 62 HH, entrevista Em brasileiras: vozes, escritos do Brasil , 1977. In: DINIZ, Cristiano (Org.) Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2013. 141 (...) tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é o homem que sabe dar conselhos. Mas, se “dar conselhos” parece hoje algo antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Em consequência, não podemos dar conselhos nem a nós mesmos, nem aos outros (...). O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção. Porém esse processo vem de longe. Nada seria mais tolo que ver nele um “sintoma de decadência” ou uma característica “moderna.” (BENJAMIN, 2011, p.200 e 201) Walter Benjamim localiza a aparição da imprensa, no alto capitalismo, como o instrumento que mais modificou a forma de comunicação, e que esta, foi a que influenciou decisivamente a forma épica, “é a mais ameaçadora” e provoca também, uma crise no romance – “essa nova forma é a informação” (2011, p.202). Benjamin cita Villemessant, o fundador do Fígaro, que segundo ele, captou a essência da informação com uma fórmula famosa: “’Para meus leitores’, costumava dizer, ‘o incêndio num sótão do Quartier Latin é mais importante que uma revolução em Madri” (Apud. BENJAMIN, 2011, p.202). Uma questão decisiva se apresenta aqui – a questão temporal: a informação aspira uma verificação imediata, diz Benjamin. Enquanto a experiência, que continha algum saber “vinha de longe – do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido na tradição – dispunha de autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência” (Ibidem, p.202 e 203). 142 Quem faz um comentário muito bonito e muito esclarecedor a esse respeito é o cineasta, documentarista brasileiro João Moreira Salles. Numa fala63 sobre a construção do seu documentário “Nelson Freire”64, enfatiza a diferença entre a notícia jornalística e a narração da experiência, a partir de um exemplo muito simples, em que a primeira, preocupada em apresentar os fatos, esquece-se de uma relação muito especial e dá um lugar e um sentido para os fatos do mundo. Diz ele: Eu não sei quando começa o outono, mas digamos que seja vinte e um de março – “vinte e um de março começou o outono” – essa é uma notícia, a outra coisa é você descrever a árvore que fica vermelha diante da sua janela. Aí você não ta dando uma notícia sobre o outono, mas você ta de certa maneira transmitindo uma experiência do outono, que é uma coisa diferente. (SALLES, 2003, 7’) A descrição da árvore que fica vermelha diante da nossa janela implica a inserção do tempo agindo sobre o corpo e sobre a matéria. Há algo aí entre uma disponibilidade de olhar e poderíamos trazer também para o campo da escuta – a importância do tempo na constituição de um lugar para as coisas. Um pouco mais adiante, João Moreira Salles, classifica a informação, os dados, os fatos, como algo que “não tem corpo, não tem dimensão, não tem capacidade de penetrar” (5’ 9’’), colocando a narração da experiência como aquilo que tem a potência mesmo de transmissão, de transmitir algo. Isso que tem capacidade de penetrar, que tem a 63 64 Disponível em: , Acesso em 18/01/2015. Nelson Freire (2003) Brasil - 2003 - Documentário - 102 minutos. Direção: João Moreira Salles, Roteiro: Flávio Pinheiro, João Moreira Salles e Felipe , Lacerda, Direção de fotografia: Toca Seabra, Montagem: Felipe Lacerda e João Moreira Salles, Distribuição: Riofilme. Disponível em: Acesso em 18.01.2015. 143 capacidade de tocar, de instaurar um lugar no campo do outro – isso talvez diga, talvez isso seja algo da ordem de como fazer uma marca, de como instaurar quem sabe, uma memória. Cada manhã recebemos notícias de todo mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações. (BENJAMIN, 2011, p.203) Para exemplificar o que diz, Benjamin recorre à antiguidade e traz uma história de Heródoto “o primeiro narrador grego”. A história é de Psammenit, o rei egípcio na ocasião em que é derrotado e reduzido ao cativeiro pelo rei da Pérsia, Cambises. Este, para humilhá-lo manda colocarem o prisioneiro na rua, na hora em que passaria o cortejo triunfal dos persas. O prisioneiro vê então sua filha degradada à condição de criada e, em seguida seu filho, caminhando no cortejo para ser executado. “Enquanto todos os egípcios se lamentavam com esse espetáculo, Psammenit ficou silencioso e imóvel. Mas, quando viu um de seus servidores, um velho miserável, na fila dos cativos, golpeou a cabeça com os punhos e mostrou sinal do mais profundo desespero” (BENJAMIN, 2011, p.203). Essa história Benjamin vai considera-la como aquela que nos ensina “o que é a verdadeira narrativa” porque, ao contrário da relação imediata da informação, que só tem valor enquanto ainda é nova, a narrativa “não se entrega” diz Benjamin, “ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de desenvolver” (Ibidem, p.204). Montaigne, diz Benjamin, interpreta a lamentação tardia do rei de que ele “já estava tão cheio de tristeza, que uma gota a mais bastaria para derrubar as comportas”. Mas Benjamin (Ibidem, p.204) propõe outra possibilidade de compreender essa narrativa: “O destino da família real não 144 afeta o rei, porque é seu próprio destino”. Propõe então: “Ou: muitas coisas que não nos afetam na vida nos afetam no palco, e para o rei o criado era apenas um ator”. Ainda, uma terceira possibilidade de compreensão: “Ou: as grandes dores são contidas, e só irrompem quando ocorre uma distensão. O espetáculo do servidor foi essa distensão.” A repetição do “ Ou:” coloca em cena a multiplicidade de sentidos que podem ser extraídos da narrativa de Heródoto – “Heródoto não explica nada. Seu relato é dos mais secos” (Ibidem, p.204). Por isso, diz Benjamim, sua história é capaz de suscitar depois de milênios, espanto e reflexão. Basta um instante de muita densidade para alterar o tempo? Ou é para os presentes ao acontecimento, que o tempo, foi a partir daquele instante, modificado? O tempo passa como um continuum infinito. O que então, marca a passagem do tempo? O tempo que passa, parece precisar da disponibilidade de um olhar mais demorado para as coisas para ser assentado em algum lugar. E esse que olha, para poder contar da árvore que fica vermelha diante da sua janela precisa de alguém para escutar sua narrativa. Benjamim diz que a memorização das narrativas está vinculada ao tédio, uma sobra de tempo não preenchido – algo em vias de extinção na cidade e também no campo – e, por isso, tem como consequência, o desaparecimento “do dom de ouvir, desaparecendo a comunidade de ouvintes. “Contar histórias sempre foi a arte de conta-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido” (BENJAMIN, 2011, p.205). 145 Para psicanalista, professora e pesquisadora Simone Moschen65, essa passagem pode dar uma indicação sobre as fronteiras, aqui, fronteiras psíquicas, entre o eu e o mundo, entre o eu e o outro. Fronteiras abertas, numa particularidade daquele que escuta não estar numa posição de domínio, mas como aquele que sofre a experiência, revelando uma condição de certa porosidade. Ser tocado pela narrativa acontece, quando o “ouvinte esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido”. E o que se imprime nele é uma marca, a marca do narrador, diz Benjamin (2011, p. 205) “como a mão do oleiro na argila do vaso”. Ao psicanalista é reservado uma disposição à escuta, uma dedicação a palavra do outro. E ao poeta e escritor, é de seu feitio, oferecer à palavra a emissão de seu som no espaço, seja no ar ou numa folha de papel, ou ainda na tela de um computador. Eis que me coloco na linha de fronteira, e perco vez ou outra a medida. Nesses nomes que delimitam ofícios – artista, psicóloga, professora, escritora, pesquisadora, me reconheço mais talvez sob o signo da curiosidade e do fascínio. E de tempos em tempos, gosto de repetir a mim mesma a pergunta-dispositivo: o que me interessa é... E as últimas respostas têm sido: a poesia. Ponto órfico, como nomeou Lezama Lima, do qual somos feridos, em alguma medida. O escritor, poeta, crítico literário e professor Manoel Ricardo de Lima vê, na escuta do mundo, uma relação particular naquilo que conseguimos ouvir como uma via para fixar um ponto, “dar fixão ao que se ouve”66, brincando com a palavra ficção, e propõe a MOSCHEN, Simone (2013) Comunicação oral em disciplina Escritas da experiência – Experenciar, ler, escrever – ministrada no PPGPSI – Programa de Pósgraduação em Psicologia Social Institucional da UFRGS, 2013/01. 66 Palestra ministrada por Manoel Ricardo de Lima: Modos de oficina para as composições de uma “Geografia Aérea ” – Contaminações entre texto e imagem numa miniaturização do pensamento a partir dos usos da anotação como procedimento. Quando a montagem de fragmentos, num campo de tensões entre 65 146 capacidade de penetração, tal qual essa de que João Moreira Salles fala, como uma via para “tocar a causa do outro”. “Isto é político” diz Manoel. A “tentativa de tocar uma vida no presente.” Segundo o escritor, “estamos aqui não para causar admiração, mas para esclarecer, fixar, trocar experiência”. Para que isso ocorra, é preciso instaurar uma conversa, e não emitir opiniões sobre as coisas, continua ele, “a opinião anula a causa do outro”, antes, é preciso escutá-lo, ter uma disposição à escuta. Afinal através de uma conversa, são gerados problemas, as coisas podem entrar em movimento, podem circular. Outra indicação preciosa do poeta é a leitura que ele propõe de Walter Benjamin em relação à experiência, como uma escavação: (...) Benjamin acerca da escavação da experiência como ato que recorda, quando recordar é antes de qualquer coisa o ato de trazer para perto do coração, aproximar do coração uma lembrança, mesmo se através de uma anamnese, esquecer o saber (e se ao mesmo tempo escavar não é senão ir ao mais fundo possível, mesmo que no subterrâneo mais intenso da superfície de uma imagem possível (...) na primeira, ele diz que “Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava” (BENJAMIN, 1987, 239). (LIMA, 2008, p.56) Jeanne Marie Gagnebin no seu livro Lembrar Escrever Esquecer (2006), no capítulo intitulado Memória, História, Testemunho vai propor também ela uma leitura de Walter Benjamin em seus dois textos clássicos, Pobreza e Experiência e O Narrador, para situar algo que toca em alguma medida este trabalho, no que diz respeito à transmissão de uma experiência. O que ela nos lembra, entretanto, é a importância do fato de que a experiência não é mais possível e a transmissão da tradição se quebra (2006, p.52). É experiência e linguagem, é também um desdobramento inventivo de escrita com a imaginação. Evento é promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do IA/UFRGS, com coordenação da professora Élida Tessler (PPGAV/UFRGS) ocorrido em 10/10/2014 – Instituo de Artes de Porto Alegre. 147 preciso atentar para a ruptura diz ela, e que o texto O narrador de Benjamin formula uma nova exigência: “uma narração das ruínas da narrativa, uma transmissão entre os cacos de uma tradição em migalhas.” Diz isso referindo-se à figura do narrador Justo que Benjamin evoca, cuja característica marcante é o anonimato, fazendo uma primeira oposição às grandes narrativas épicas. Em segundo lugar, ela lembra esse novo narrador que nosso tempo exige, “seria a figura do trapeiro, do catador de sucata, esta personagem das grandes cidades modernas que recolhem os cacos, os restos, os detritos, movidos pela pobreza, mas, certamente, também pelo desejo de não deixar nada se perder” (GAGNEBIN, 2006, p.53). Gagnebin comenta que o que o narrador sucateiro apanha não são os grandes feitos, pelo contrário, apanha ele tudo aquilo que foi deixado de lado “algo com que a história oficial não sabe o que fazer” (Ibidem, p.54). O que são esses elementos de sobra do discurso histórico? Pergunta ela; então diz: A resposta de Benjamin é dupla. Em primeiro lugar, o sofrimento, o sofrimento indizível que a Segunda Guerra Mundial levaria ao auge, na crueldade dos campos de concentração (que Benjamin, aliás, não conheceu graças ao suicídio). Em segundo lugar, aquilo que não têm nome, o anônimo, aquilo que não deixa nenhum rastro, aquilo que foi tão bem apagado que mesmo a memória de sua existência não subsiste – aqueles que desapareceram tão por completo que ninguém lembra seus nomes. (GAGNEBIN, 2006, p.54) O que estes e outros textos de Benjamin insistem com força, diz Gagnebin, é na exigência de memória, levando em conta as dificuldades que pesam sobre a possibilidade de narração, sobre a possiblidade da experiência comum, sobre a possibilidade de transmitir e narrar experiências. Como apresentou Benjamin, o modo como a informação se infiltrou nos modos de comunicação e alterou a experiência mesma do tempo, em que a relação com o imediato das novidades nos capturam e devoram, somada à 148 acentuada falta de tempo para dedicar o olhar e a escuta do outro, isso agrava ainda mais as condições de constituir espaços de troca de experiências. O que desaparece é também o tempo, a sobra de tempo de onde surgia o tédio, responsável observou Benjamin, pelo o espaço de constituição da comunidade de ouvintes, fundamentais para a memorização das histórias narradas. Que consequências tem isso para o presente? No seu texto Sobre o conceito da História, Walter Benjamin dá duas indicações muito preciosas: primeiro, de que as lutas de classes: “Questionarão sempre cada vitória dos dominadores”. Em segundo, ele diz: “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer” (BENJAMIN, 2011, p.224). E nos dá o lembrete que repentinamente ilumina um grande faixo de escuridão: “E esse inimigo não tem cessado de vencer” (Ibidem, p.225). É urgente então, um trabalho de memória e rememoração, para não esquecer os sofrimentos indizíveis, ainda que os que a ele sucumbiram, nós deles, “não conhecemos nem seu nome e nem seu sentido”. Principalmente como condição de ver nascer esperança – esperança de que um dia o inimigo então pare de vencer, pois a rememoração diz Gagnebin (2006, p.55) “significa uma atenção precisa ao presente, pois não se trata somente de não esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa a transformação do presente”. Como habitar o presente talvez seja uma das perguntas mais difíceis de cada um responder a si mesmo. O que é, como é o contemporâneo? Para o filósofo das utopias, Ernst Bloch, no seu livro O Princípio Esperança (2005), a questão do aqui e do agora constituem a categoria utópica por excelência, e que parece ser fundamental também no pensamento de Walter Benjamin (2011, p.255) – quando este coloca a questão do despertar como um dom, o “dom de despertar no passado as centelhas da esperança” 149 quando ninguém mais está em segurança, nem mesmo os mortos, “se o inimigo vencer”. Portanto, o que está em jogo ao questionar o tempo presente, o contemporâneo, é antes de tudo as categorias da esperança. Mas, segundo Ernst Bloch, o presente está imerso numa espécie de obscuridade: Da mesma forma o aqui e o agora, que estão sempre se iniciando nas proximidades, constituem uma categoria utópica, sim a mais central de todas – pois ela, ao contrário da abordagem redutora de um nada ou da abordagem resplandecente de um tudo, nem mesmo chegou a ingressar no tempo e no espaço. Ao contrário, os conteúdos dessa proximidade mais imediata ainda fermentam na obscuridade do instante vivido, que é o verdadeiro nó do mundo, o enigma do mundo. A consciência utópica quer enxergar bem longe, mas no fundo, apenas atravessar a escuridão bem próxima do instante que acabou de ser vivido, em que todo o devir está à deriva e oculto de si mesmo. (BLOCH, 2005, p. 22 e 23) Como fazer para atravessar a escuridão bem próxima do instante que acabou de ser vivido ? Como alcançar o devir se na obscuridade do instante ele está à deriva e oculto de si mesmo? Quem pode esclarecer um pouco a questão é o filósofo italiano Giorgio Agamben (2009), ao fazer uma reflexão importante sobre O que é o contemporâneo. Ali sua primeira colocação vem de Nietzsche: “O contemporâneo é o intempestivo (...)” (2009, p.58), no sentido, de querer acertar as contas com o seu tempo, “tomar posição em relação ao presente” (Ibidem, p.58), pois Nietzsche, diz Agamben, percebe que há uma discordância do tempo presente, constantemente devorado pela febre da história, fazendo uma exigência de atualidade do presente numa espécie de desconexão, de dissociação. É partindo dessa formulação nietzschiana que Agamben vai propor que: 150 Pertence verdadeiramente ao seu tempo, verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido inatual; mas exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é mais capaz do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo. (AGAMBEN, 2009, p.58-59) Agamben vê na figura do poeta aquele que porta um necessário deslocamento com seu próprio tempo – o ser anacrônico por excelência, e que exatamente por esta condição, trágica, “um homem inteligente pode odiar o seu tempo, mas sabe, em todo o caso, que lhe pertence irrevogavelmente, sabe que não pode fugir ao seu tempo” (2009, p.59). Encontra no poeta uma definição do contemporâneo: “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro.” (Ibidem, p.63). Ernst Bloch quer atravessar a obscuridade do tempo presente, e Agamben propõe para isso, uma imersão nessa escuridão – “contemporâneo é, justamente, aquele que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente” (Ibidem, p.63). Em seguida o filósofo se pergunta: “Mas o que significa “ver trevas”, “perceber o escuro”? E nos responde que, a partir da resposta neurobiológica, quando entramos num ambiente privado de luz, há uma atividade no organismo que desinibe uma série de células periféricas da retina, off-cells, remetendo que o escuro não é a ausência de luz, uma não-luz, mas um produto da visão. As consequências dessa primeira resposta são de que há uma atividade muito particular em jogo, e que “no nosso caso” é uma operação de “neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir as suas trevas.” (Ibidem, p.63). Lembrando que o escuro não é, no entanto, separável daquelas luzes. É preciso, portanto, sustentar o paradoxo, e pensar que o contemporâneo “não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, sua íntima obscuridade.” Para que densa escuridão 151 estavam abertos os olhos de Hilda Hilst, e que pavor sentia ela diante da catástrofe cotidiana, das notícias que não a deixavam dormir: O quanto a vida é líquida Atenção: ouvi às quatro da matina, através da Central Brasileira de Notícias (CBN), que, em Rondônia e no Acre, 500 mil meninas de 12 e 14 anos são vendidas como prostitutas aos garimpeiros. Se forem virgens, valem CR$ 20 milhões. O preço das não-virgens não foi dito. Se adoecem, são em seguida assassinadas. Fiquei em estado catatônico. Ainda estou. Pausa longa. Segundo os astrólogos, no meu mapa astral há a chamada “trindade da alma”, e isso quer dizer que eu recebo no peito, como um soco, as múltiplas dores do mundo. E por isso, de dor e de compaixão, posso em seguidinha morrer. E para morrer “esquecendo”, resolvi beber além do que já bebo, e como vou ficar bebendo por algum tempo (porque o teor da notícia lá de cima é insuportável e sinistro), esta crônica e mais algumas serão dedicadas às minhas “Alcóolicas”, e vocês terão a chance de ler alguns dos mais belos poemas da língua. Boa Noite. Aí vão os primeiros três: I. a Jamil Snege É crua a vida. Alça de tripa e metal. Nela despenco: pedra mórula ferida. É crua e dura a vida. Como um naco de víbora. Como-a no livor da língua Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me No estreito-pouco Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida 152 Tua unha plúmbea, meu casaco rosso. E perambulamos de coturno pela rua Rubras, góticas, altas de corpo e copos. A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos. E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima Olho d’água, bebida. A vida é líquida. II Também são cruas e duras as palavras e as caras Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte É um rei que nos visita e nos cobre de mirra. Sussurras: ah, a vida é líquida. III Alturas, tiras, subo-as, recorto-as E pairamos as duas, eu e a Vida No carmim da borrasca. Embriagadas Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa. 153 Que estilosa galhofa. Que desempenados Serafins. Nós duas nos vapores Lobotômicas líricas, e a gaivagem se transforma em galarim, e é translúcida A lama e é extremoso o Nada. Descasco o dementado cotidiano E seu rito pastoso de parábolas. Pacientes, canonisas, muito bem-educadas Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa. Ah, o todo se dignifica quando a vida é líquida. (HILST, 1998, p.50) Num limite em que se pode sucumbir, não sabendo mais como enfrentar os olhos ferozes do nosso século, sua bestialidade, talvez Hilda tenha resolvido mimetizar com ela, tenha num ato de criação de alguma outra coisa, entre desistência e revolta, sempre em contradição, se lançado numa nova experiência. Este talvez tenha sido um dos maiores desejo da escritora Hilda Hilst. Essas noções se aproximam muito do conceito de imagem sobrevivente do historiador e crítico de arte Didi Huberman, pensadas para problematizar a trilogia erótica de Hilda Hilst. Quando a escritora instaura uma descontinuidade radical entre o antes o e depois, ao lançar-se na chamada trilogia pornográfica, há algo aí muito especial e, ao mesmo tempo, complexo de apreender. O artista, o escritor que deixa ao mundo sua obra, oferece seu olhar e sua medida como um testemunho do seu tempo. A reunião de alguns pensadores pode ajudar a compor possibilidades. 154 José Castello, numa coluna do jornal O Globo de 20 de março de 2010, intitulada A matriz de papel, cita Imre Kertész a partir da sua leitura de Gustavo Bernardo em O livro da Metaficção (2010): “o Eu é uma ficção na qual, no máximo podemos ser co-autores” (KERTÉSZ Apud. CASTELLO, 2010, p.1). As referências que me remetem essa frase são muitas. Minha escolha é começar contando uma história. Uma das frases que me ocorreu foi de Cecília Meirelles: “A vida só é possível re-inventada” (1996, p.48). Este é o modo como ela começa o poema Reinvenção, e depois um pouco adiante repete: “Mas a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada.” (1996, p.48). Aqui aparece uma medida de contorno separando a vida e a escrita. Li ali uma espécie de medida, de delimitação: a reinvenção sendo necessária como reparação da vida. Estão muito próximas uma proposição da outra. Penso ler uma diferença, quando Imre Kertész nomeia a própria vida como da ordem do ficcional fazendo borrar as fronteiras entre vida e ficção, e que parecem mantidas no poema de Cecília Meireles. Talvez seja apenas uma primeira impressão. Seguimos. Essa compreensão de que a linguagem não representa uma realidade, mas de fato a cria, é uma questão debatida em diferentes áreas do conhecimento. Adorno, filósofo, em seu Ensaio como Forma vai compreender o ensaio “ele próprio essencialmente linguagem” (2012, p.29), argumentando que a forma na qual algo pode ser pensando não é indiferente ao objeto do pensamento. Logo, “a exposição é, por isso, mais importante para o ensaio do que para os procedimentos que, separando o método do objeto são indiferentes à exposição de seus conteúdos objetivados.” (2012, p.29). Essa indicação de que o modo, a forma como algo é feito interfere na coisa feita, diz do terreno do ficcional na medida em que a fronteira entre o ficcional e o não-ficcional não está bem delimitada. 155 A fronteira está rompida. A fronteira. Eu partia, tocava, tudo estava em movimento. 156 ESTUDOS DA FORMA II – Diário de Paris 157 158 a . . F.1gura 29 ·Andrea Fricke Duarte, Dt. ,no de Pans 111, 2014, fotografia digital. 20cm x 14,6 em 159 , . - cJEWJ+i<, . h k. reA\l, cMr\ qjÔ YYJM Figura 30: Andrea Fricke Duarte, Diário de Paris IV, 2014, fotografia digital. 20cm x 14,6 em 159 Figura 31: Andrea Fricke Duarte, Diário de Paris V, 2014, fotografia digital. 20cm x 14,6 em 160 • Figura 32: Andrea Fricke Duarte,Diário de Paris VI, 2014, fotografia digital. 20cm x 14,6 em 161 ' Y'Y) . s --0 Figura 33: Andrea Fricke Duarte, Diário de Paris VI/, 2014, fotografia digital. 23,7cm x 15 em 162 Figura 34: Andrea Fricke Duarte,Diário de Paris VIII, 2014, fotografia digital. 20cm x 14,6 em 163 • CKvtytR · uKA C"b 5t> - 'f1""'"' -loü">"' "' Se k õ ll ck . LM• obf)Q U\(:.0\)'. . : t )At{ J-t. tH\- . YJ :ft,... - f f1 > . v.,.,Pt : ·CAti- f w\- piGo-k...Joe-4 Figura 35. Andrea Fricke Duarte, Diário de Paris IX, 2014, fotografia digital. 20cm x 14,6 em 164 Essas imagens foram feitas lá em Paris, num tempo estrangeiro. Troquei o verão pelo inverno e cheguei lá no dia onze de janeiro de 2014. Isabela e eu, em terra nova-e-velha, por tantos anos, um amor guardado por dentro da distância. Paris foi sempre imensa, e misteriosa. De alegrias raras e de uma pele tão fina, que a qualquer momento se des-faz-(s)er-se-ia. É uma imagem que me surge agora, uma camada de pele tão fina, meio transparente. E, ao mesmo tempo, um invólucro onde quero ser guardada, e me enredar nela, e voltar para essa atmosfera de sonho, de encanto e de perturbação. É difícil dizer disso. Acho que desde que voltei, no dia 06 de outubro de 2014, ainda não, acho que nem sequer sai em busca de palavras para ensaiar dizer qualquer coisa. É um balbucio, ou antes, ainda, é como uma gravidez ao contrário, ou algo como escreveu Mia Couto, em Antes de nascer o mundo: “E todo silêncio é música em estado de gravidez” (2009, p.13). Estou respeitando as imagens que estão nascendo. Lembrei agora de uma frase de Marguerite Duras, que tenho anotada num pedaço de papelão no qual desenhei um rosto com tinta guache azul, há alguns anos. Mas fica pendurado na parede da sala da minha casa e diz assim, a nota sobre o rosto: “Estar sozinha com o Livro ainda não escrito significa estar ainda no primeiro sono da humanidade.” Não tenho a fonte anotada. Mas Marguerite Duras é também um amor antigo. O livro de cabeceira dos meus quinze anos, O amante (1985), e a gravidade das cenas em terracota de uma Indochina colonial que se convertem num azul escuro de melancolia e num noturno de Chopin, quando um jovem se suicida se atirando do navio. O navio que leva a menina velha, de rosto devastado, aos dezoito anos a caminho da França. Quando ela finalmente chora, ao fim do livro, sem saber que tinha amado, até 165 aquele momento em que se depara com o corpo do jovem suicida. Em entrevista para a tevê francesa67, a escritora conta que o navio foi parado, mas o corpo foi perdido no mar. (me dou conta que escrevo sobre os náufragos, sobre os que sucumbiram, foram engolidos pelo mar, mas Hilda é a sobrevivente, que resgata a si mesma dessas trevas densas, e que ensaia a vida e as noites inteiras para não morrer). Lembro-me de um sonho que tive quando reiniciei a leitura do livro A imagem sobrevivente – História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg, de Didi-Huberman, há poucas semanas de ir para Paris. Nele eu tirava corpos e mais corpos submersos, de crianças da água. Era uma espécie de buraco que eu enfiava a mão e os corpos não paravam nunca de aparecer. Não podia compreender como eles voltavam a respirar depois de tanto tempo embaixo d’água. Eu fazia respiração bocaa-boca, me molhava, e as crianças voltavam à vida. Havia muitas. O sonho foi intenso e perturbador. Contei-o para minha amiga Janaína Bechler que, na época me disse que tinha relação com o livro que eu estava lendo e com a minha pesquisa da tese. Do mesmo diário que tirei as imagens para compor Estudos da forma II, eu anotei outro sonho, esse sonhado em Paris. Quero narra-lo aqui, pois sonhei com uma espécie de fórmula artística. Sua data não foi anotada, mas ele está anotado entre os dias 10 e 22 de maio de 2014: Eu queria demonstrar que a poesia é superior ao pensamento. 67 Entrevista a Marguerite Duras.Programa de TV Apostrophes (1984). Disponível em: Acesso em 24/03/2015. 166 “Sonhei que uma mulher morava sozinha com sua filha em Paris e escrevia a fórmula do coeficiente artístico de Duchamp, como se fosse ela que o tivesse inventado. Ela tinha ido fazer qualquer coisa e descia e subia uma escada em espiral várias vezes. Quando ela vai entrar no apartamento onde tinha deixado a filha dormindo, um menino sai de outro apartamento e a olha. Ele tem o olho roxo como o machucado que Isabela está agora no rosto. A mulher pisca para ele e entra no seu apartamento. Quando entra, se olha no espelho e está com a aparência de uma louca. Sua filha acordou antes de ela chegar e reclama porque ela a deixou sozinha – onde ela estava? E nessa hora esta mulher está escrevendo a fórmula do coeficiente artístico. Ela começa a escrever a fórmula e a explicar para a filha o que faz. Sonhei com a personagem feminina do Duchamp?“. Rrose Sélavy ou Rose Sélavy foi um dos pseudônimos do artista Marcel Duchamp. O nome é um trocadilho francês que pode ser lido como “Eros, c'est la vie" – Eros é a vida. Também foi lido como "arroser la vie" ("para fazer um brinde à vida"). 167 VIII. LIVRE PARA FRACASSAR: DOIS PONTOS VAGALUMES Acho isso impensável: existir. (HILST, 1997)68 A declaração de desistência de Hilda Hilst da literatura “séria” marca sua estreia na sua chamada ‘escrita pornográfica’. Toma ela de empréstimo a frase do escritor francês Georges Bataille: “Sinto-me livre para fracassar”. Frase escrita na contracapa do livro Amavisse (1989)69, último livro antes de lançar a trilogia. São diversas as declarações da escritora, em diferentes tempos, a esse respeito, algumas vezes, oscilando sua posição discursiva. Trarei algumas entrevistas para apresentar esses momentos. O que capturou meu olhar e a minha escuta de Hilda, de suas queixas, foi a identificação de um momento anterior a esse, bem documentado no período da década de 1990, quando do lançamento da trilogia pornográfica. Encontrei uma desistência anterior da literatura por Hilda, 13 anos antes, em 1977. A essas duas desistências, chamei-as de vagalumes, a partir das imagens-vagalume propostas por Didi-Huberman (2011), que detalharei mais adiante. Foi necessário assumir certa falência, como uma operação negativa, “desistir da escrita” para mais tarde poder retomá-la. 68 69 Hilda Hilst, 1977. In: DINIZ, Cristiano (Org.) Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2013, p.36. HILST, Hilda. Amavisse. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1989. 168 Em 1977, Hilda Hilst dá uma entrevista que é publicada na França: Em Brasileiras: vozes, escritos do Brasil.70 Ali ela expressa uma grande vontade de se comunicar, de tocar o outro, de encontrar um modo de ser escutada. Comenta a relação entre os diferentes gêneros e sobre a recepção da sua obra: Hilda Hilst: Eu sempre tentei me aproximar do outro, ainda que no decorrer da vida eu tenha medo dessa proximidade. Acho que consegui um trabalho de escrita valioso. Parece que eu consegui de verdade dizer poeticamente, do mesmo modo como para mim era importante que algumas coisas fossem ditas. Mas eu também precisava me exprimir de forma que o outro “escutasse”... Porque é preciso reconhecer isto: não é todo mundo que consegue entrar facilmente na poesia, entrar poeticamente no meu mundo. A dificuldade de comunicar é muito grande. Eu sou editada, mas não sou lida. Meus poemas são citados, mas ninguém os compra. Isso me deixava um pouco triste antigamente, porque ninguém me falava: “Eu li o que você escreveu. Eu vivi um momento parecido com o seu. Eu também sinto o que você sente”. CP e MLP: Mas você recebeu prêmios importantes? HH: Sim71. Sou alguém sobre quem as pessoas falam, mas meus livros não são lidos. (...) meu trabalho é sagrado. Eu escrevo. Que me deixem escrever, então. Ao mesmo tempo, a poesia me proporcionou grandes alegrias nesses momentos em que eu parecia ter encontrado a forma exata de traduzir esse resíduo, a essência da emoção. Mas é verdade isso teve muito pouco eco. Acho que as tentativas que eu fiz em seguida, meu teatro, minha ficção, foram tentativas de aproximação. Um ir em direção 70 (Org.) Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2013, p.36-45. 71 Prêmio Pen e Prêmio Anchieta. PISA, Clecia & PETORELLI, Maryvonne Lapouge. Brasileiras: voix, écrits du Brésil. Paris: Des Femmes, 1977. Tradução de Marcela Vieira. In: DINIZ, Cristiano 169 ao outro. Mas algo trágico aconteceu, porque foi um fracasso completo, a distância ainda é muito grande. Como se a comunicação devesse se manter impossível. No meu teatro, eu procuro transmitir essa maneira de sentir, de existir, que é a que eu tenho na vida. É um relato de autoconhecimento. (...) Em uma das minhas peças eu fiz concessões, a língua está muito clara. Mas não aconteceu nada. E quanto as minhas obras de ficção, os comentários são os mesmos: que eu escrevo em sânscrito. Não posso dizer que lido muito bem com isso. É estranho, mas mesmo que eu seja poeta – e eu sei que sou –, cheguei a pensar que eu não era. Eu perguntava para o Anatol Rosenfeld, de quem eu gostava muito: “Porque as pessoas acham que eu escrevo para os eruditos? Eu falo tão claro. Eu falo até sobre a bunda.” E ele me respondia: “ Mas tua bunda é terrivelmente intelectual, Hilda”. Eu ficava desesperada. Eu disse para mim mesma: já que não acontece nada, quero escrever do meu jeito, como me der vontade. Sobre Agda, por exemplo, algumas pessoas me disseram que não entenderam nada do começo ao fim. O que me parece absurdo. No entanto, eu escrevo com palavras, com palavras da língua portuguesa. É o ritmo, principalmente, que importa. (...) Eu proponho uma remodelagem, dirijo uma proposta diferente para atingir o outro, de acordo com uma visão que tenho dele, uma torrente, fazer com que o outro exploda, que ele seja obrigado a praticar por conta própria esse processo que é, ao mesmo tempo de regresso e de autoconhecimento. (...) Escrevi oito peças de teatro, dez textos, as minhas coletâneas de poesia, e nada, sempre nada: estou à margem. Para mim é uma questão existencial: como ser mais útil ao outro, como servir a comunidade? Escrevendo, eu sou de uma inutilidade completa. O que faço pelo outro? A resposta: um vazio absoluto. Não acho que sou um veículo acessível... não sou acessível nem em minha própria língua. É por isso que decidi me dedicar a essas experiências no gravador, as experiências de gravação em fitas sobre as quais eu já falei para a Clelia. Eu com certeza seria mais útil colaborando com essas experiências do que escrevendo livros que talvez sejam muito valiosos, mas que ninguém lê, que nada provocam, que não encontram nenhum eco nos outros. (DINIZ, 2013, p.42 e p.43) 170 • ru. "'<.c.·· "- \ WJ ""Vg.)Q 0-+{-Q ""'"-" o. ;J -:?;:..;.:.;.::;::: 'i:l::-s:;::-; v .. n R._v..k \, .h\) L<>-..\_.., ,. - !"" ?."' , _)-..a- <->'..., ..<:I , \U1).}: ::!> Q. yt ,_) !!-.O _ j! v.o:v... 1>4._ ""PES<-C""\P-L't <-,A 171 Foi nesta experiência que Hilda Hilst se lançou, por um período aproximado de 4 anos, de gravar vozes de mortos num gravador, depois de uma primeira queda nas suas expectativas com um retorno que ela esperava que viesse da sua literatura, que lhe deu esperança, ela disse. Seguirei com a mesma entrevista, porque me interesso por esses movimentos de desistência e desesperança, quando Hilda Hilst cria uma saída, inesperada, e sempre para o outro, de caráter incompreensível. Em ambos os momentos, o do lançamento de HH na pesquisa com gravação de vozes de mortos, e 13 anos depois, com o seu lançamento na escrita pornográfica, o que se produziu na cultura foi uma ruptura de sentido, um corte, uma impossibilidade tal de compartilhamento que Hilda Hilst foi desacreditada e acusada, em ambos momentos, de estar sendo acometida pela insanidade, pela loucura. CP e MLP: Você pode nos explicar do que se trata? HH: Comecei a me interessar por essas descobertas depois de assistir a uma comunicação de Friedrich Jürgerson, um sueco, sobre uma série de experiências que ele tinha realizado ao registrar cantos de pássaros no gravador, perto de sua cabana em Mölnbo. Ao reproduzir essas fitas, Friedrich Jürgerson percebeu que algumas vozes vinham interferir no canto dos pássaros. Ele trabalhou oito anos nessa experiência e reuniu vozes de cinquenta amigos seus, amigos mortos que se fizeram reconhecer ou revelando diretamente seus nomes, ou confirmando alguns detalhes que somente eles poderiam conhecer. Eu me perguntei: porque não tentar?... E comecei há pouco mais de um ano. Pensei que não ia encontrar nada, mas depois cheguei a alguns pequenos resultados muito impressionantes. Eu trabalho de cinco a seis horas por dia, veja... [Hilda nos explica por muito tempo as modalidades da experiência]: registro com o gravador ligado no rádio. Em seguida, é preciso reproduzir a fita, trecho por trecho 172 rebobinando dezenas de vezes com um certo ritmo, e aí retroceder de acordo com esse ritmo – porque existe um ritmo a ser encontrado, isso é muito importante –, que as vozes aparecem. Alguns ouvidos levam muito tempo para captar alguma coisa. Tem gente que tem que esperar dez, doze horas, antes de conseguir distinguir alguma coisa. È uma coisa de treinamento. É necessário uma disciplina muito grande. Daqui alguns meses, pretendo fazer uma comunicação para o Instituto de Parapsicologia. Espero contribuir assim para uma descoberta que acredito ser vital para o homem, porque tem a ver com a problemática da morte e modifica completamente este conceito. (...) Conservamos a individualidade na morte. E ainda hoje a física seja incapaz de explicar o que acontece (as vozes também aparecem nas gaiolas de Faraday), o fato está aí. (DINIZ, 2013, p.42-44). Numa entrevista, de 1978, Hilda, estrela Aldebarã72, quando perguntada se essas experiências influenciaram na sua criação literária Hilda diz: “Houve uma esperança maior” (DINIZ, 2013, p.52): “Houve uma esperança maior. Comecei a experiência há 3 anos, mas há 27 anos leio, medito, penso sobre o Homem, a Morte, o Ódio etc. Acho que a minha criação literária e as minhas fitas coincidem num ponto. Justamente naquele da urgência de comunicar ao outro (...)”. Já em 1987, doze anos depois do início dessa experiência, em entrevista para seu amigo Caio Fernando Abreu, Deus pode ser um flamejante sorvete de cereja, o amigo lhe pergunta: 72 PEDRA, Nello. Hilda, estrela Aldebarã. Shopping News, São Paulo, 1°jan. 1978. 173 CFA – Quando a gente fala no seu nome, as pessoas imediatamente relacionam com “aquela mulher que grava vozes dos mortos”. Você continua com essas experiências? HH – Eu parei em 1976. Tive experiências fantásticas, emoções fortíssimas. Foi uma loucura ouvir a minha mãe, que tinha morrido dizer “sim”. Copiei a experiência daquele sueco, o Jürgenson, do Instituo Max Planck, de Munique. Mas lá faziam assim: pegavam o pesquisador, um físico teórico, um engenheiro eletrônico – quer dizer, era uma coisa séria, científica. Aqui, parecia um bando de loucos, assim bossa “eu to ouvindo vozes”. Eu dizia “mas porra, eu não ouço vozes, eu gravo possíveis vozes soltas no espaço”. E todo mundo começou a achar que eu era completamente maluca. Ficou todo mundo me conhecendo como “a feiticeira, a mulher das vozes, fala com os mortos...”. CFA – De alguma forma, essa experiência influenciou na sua literatura? HH – Não, era completamente à parte. O meu interesse mesmo era com o problema da morte. (...) Fui falar das minhas experiências para uns amigos físicos e eles gargalharam. O Newton Bernardes dizia: “Hilda você tem certeza que não pôs um negrão lá atrás da figueira dizendo alô, alô?” (DINIZ, 2013, p.95-96). 174 Encontro anotações nas agendas de HH de 1977, 1978 e 197973 anotações sobre as experiências com o gravador: 06 março 1977 Gravador praticamente nulo 31 dezembro 1978 dia 1 vai fazer 2 anos que o gravador emudeceu. 48 anos. Em abril farei 49. Depois 50! 01 janeiro 1979 Nada no gravador. Só gravarei agora a lua cheia. TEMPO – VIDA – MORTE – INSTANTE 06 janeiro 1979 A hora da morte, como será a minha? De meus amigos? É preciso suportar a ideia dos desaparecimentos, de degradação. Da senilidade. Ontem ao 12h ½ no gravador em Hz vívido e uma frase incompreensível. No ano de 1978, Hilda começa escrever Tu não te moves de ti, e será publicado em 1980. No começo do ano de 1979, Hilda Hilst começa a escrita de A obscena Sra. D. que será publicado em 1982. O segundo vagalumes às avessas, ou talvez, uma preparação para o vagalume, o tempo de desistência, de falência de algo como condição de um vagalume que pode nascer depois – a aceitação do fracasso como uma condição de uma possibilidade advir. Vejo nesses momentos de desistência uma passagem, uma operação negativa fundamental para funcionou para Hilda Hilst como um Anotações da minha primeira ida aos arquivos, em novembro de 2009. Segundo a organização do período (atualmente a listagem de documentos não é a mesma) essas agendas se encontravam na classificação: Série Agendas e Cadernos (Notas pessoais e de leitura ) Caixa 01: Agendas 1973; 1977-79 e 1980-1985;. 73 175 meio dela encontrar fôlego para retomar a escrita. A segunda desistência, essa bem documentada, nomeada na contracapa do livro Amavisse (1989), “livre para fracassar”, por um poema no qual encontramos Bataille: O escritor e seus múltiplos vem vos dizer adeus. Tentou na palavra o extremo-tudo E esboçou-se santo, prostituto e corifeu. A infância Foi velada: obscura na teia da poesia e da loucura. A juventude apenas uma lauda de lascívia, de frêmito Tempo-Nada na página. Depois, transgressor metalescente de percursos Colou-se à compaixão, abismos e à sua própria sombra. Poupem-no o desperdício de explicar o ato de brincar. A dádiva de antes (a obra) excedeu-se no luxo. O Caderno Rosa é apenas resíduo de um "Potlatch". E hoje, repetindo Bataille: "Sinto-me livre para fracassar". (Hilst, 1989, contracapa) O poema resume um pouco do sentimento da escritora no período, e, diante da pergunta do entrevistador do Cadernos de Literatura (em 1999, dez anos depois), se a frase seria uma “espécie de adeus do escritor, que presta contas do que fez?”, Hilda responde: “É isso. É aceitar esse silêncio. Eu não sentia mais necessidade de falar” (1999, p.37). 176 -sn.::-ô-0 <:; \.{c . O&:;c:) f'-l o ."-' oo } -) '--\ c.c .o..;) .CP-=> '&i:> oQc..,::. L:! .oo tS "-;- :t Figura 37. Andrea Frieke Duarte,HH_32 -Imagem do arquivo, 2013. Fotografia digital. 15 em x 20 em 177 IX. HILDA HILST – ENTRE O OBSCENO, O PORNOGRÁFICO, ERÓTICO Foi com uma espécie de filiação de Hilda ao escritor francês, ao escolher se colocar questões no limite da experiência humana, que vimos ambos enfrentaram ao longo da vida, acusações de loucura e de andarem próximos demais do misticismo. Para Hilda, assim como foi também para Bataille, o obsceno, o erótico e o pornográfico foram objetos de pesquisa: em HH, nos seus cadernos de anotações pessoais74 encontramos as seguintes passagens: O que é obsceno? Ninguém sabe ali Obsceno é a MISÉRIA, a Fome, a crueldade, nossa época é obscena. Bataille descreve três formas de erotismo: do corpo, do coração e do sagrado. Erotismo: em princípio não acho prudente (piadinha) falar em erotismo em tempos de Aids. O melhor seria ler o erótico e os diálogos pornográficos. Material retirado dos arquivos pessoais de Hilda Hilst, referentes a década de 1980, estudados na primeira visita em 2009, quando eles estavam organizados por pastas: Pastas 39 e 40 (ver referências bibliográficas - Arquivos CEDAE 1). 74 178 Falou do desejo da Santidade. Desde criança. A busca. A procura. Deus ou o nome que quiserem dar ao Incompreensível. Na juventude eu busquei a beleza pulsação. A virilidade uma nostalgia. Alguma coisa que eu já havia sentido e não podia nomear. Então aventuras – tentativas de encontrar uma possível (?) perfeição. Santidade Erótica Santidade Erótica diferenciado Pornografia{ Fealdade Baixeza → AGRESSÃO {grotesco Provoca{choque {esturpor {indignação Miller – uma obscenidade violenta/grotesca/dramática75 Referências de Hilda Hilst datam de 1988, as quais são referidas ao escritor americano Henri Miller e a escritora brasileira Nélida Piñon. De Piñon, Hilda leu o livro A casa da Paixão, no ano de 1977 e sublinhou a frase: “mudar o estado do corpo era alterar todo o pensamento”. Do último parágrafo do livro. 75 179 Piñon – erotismo inconsistente e congelado (p.005) 76 Suposição de Lawrence77 OBS – CENA Aquilo que não se pode colocar em cena? Hamlet78 que escandalizou os puritanos contemporâneos de Cromwel não escandaliza mais ninguém (p.006) “Difícil colocar o problema c/ Nititez o problema de erótico – Ambiguidade – ao mesmo tempo é relacioná-lo com o amor e tb c/ a paixão = desordem. (p.020) Novalis = A vida é uma doença do espírito, uma ação apaixonada. Ao mesmo tempo – plenitude + vida Vaziez, Erótico – ligado ao desejo – desejo = amarras, prisão, embaça/79 do espírito Erótico – tb ligado à santidade na sua + alta sublimação Sobre tua grande Face – um exemplo de erotismo Sublimado Busca da Beleza, da Perfeição Nostalgia de Deus A numeração “005” e “006” é referente às páginas de um mesmo caderno e obedece a regra de organização do arquivo. Material retirado dos arquivos pessoais de Hilda Hilst na terceira visita ao acervo em abril de 2012. 77 D.H. Lawrence. 78 Personagem de Shakespeare. 79 A barra significa uma abreviação da palavra, significa “mento” = desconhecimento. 76 180 Da Morte – Odes Mínimas – erótico = Morte “Uma noite de amor é um livro de menos” Balzac (p.020) 950 milhões de famintos – Obscenos são os senhores do mundo, dos países, dos Estados e das cidades com total desconheci/ Do que seja ética política. Quanto aos outros objetivos em relação ao sexo imundo Pornográfico, sujo não sei o que são. Sei o que é mau gosto. (p.031) (Arquivos CEDAE) O obsceno está presente em toda a obra de Hilda Hilst, tal como coloca Alcir Pécora, não apenas na trilogia. Em primeiro lugar, ele destaca que “a noção de obsceno aplicada a tetralogia (três livros em prosa pornográfica, acrescentada da poesia impagável de Bufólicas) pouco tem em comum com a ideia de literatura erótica em seu sentido corrente” (2010, p.18). Inclusive, Pécora afirma que desse ponto de vista a tetralogia é a parte menos erótica de toda a sua escrita: A ideia de erotismo não ficaria mal, por exemplo, aplicada a livros como Júbilo, memória, noviciado da paixão; Cantares; Amavisse; e Poemas malditos, gozosos e devotos, desde que se ajustasse a eles uma concepção de erotismo em diálogos com matrizes místicas tradicionais, como a poesia de Sor Juana Inés, São João de la Cruz ou 181 Santa Teresa. Mas essa mesma noção de erotismo é estranha a Bufólicas, O caderno rosa de Lori Lamby, Cartas de um Sedutor, ou Contos d’escárnio. (PÉCORA, 2010, p.19) Georges Bataille, no seu livro O erotismo (1988) inicia sua reflexão apontando para uma especificidade da sexualidade humana, em relação às outras espécies: “A atividade sexual da reprodução é comum aos animais sexuados e aos homens, mas, aparentemente só os homens transformaram a atividade sexual em atividade erótica” (Ibidem, p.11). Para Bataille, o erotismo comporta um paradoxo que começa “por ser uma exuberância da vida”, mas cujo “objeto desta busca psicológica, independente do fim da reprodução, não é estranho à morte” (Ibidem, p.11). Configurando desta maneira, um jogo complexo em que entram em cena as relações entre a morte e a excitação sexual e o domínio da paixão como violência, perturbação e desordem. O autor nos sugere, portanto, que não há apenas um refinamento da espécie humana que transforma a atividade sexual em prazer, mas uma obscura rede de relações que vão falar sobre a dimensão de ultrapassamento que a pulsão erótica manifesta no humano. Dentre essas manifestações da pulsão erótica costuma-se diferenciar o erótico do pornográfico. O erótico, preservando o refinamento, tem origem também na mitologia grega (BULFINCH, 1999, p.99), no jovem alado Eros80 como a expressão do amor e filho da deusa da beleza, Afrodite81, estando mais referenciado ao amor e às artes, fazendo um contraponto ao pornográfico, por não apresentar o sexual de forma explícita. Já o pornográfico, muito bem colocado por Alcir Pécora na abertura do livro que 80 Uma das lendas mais belas e conhecidas da mitologia grega é a de Eros e Psiquê. O conhecimento geral da lenda se dá pela figura bastante difundida do anjo Eros (ou Cupido). Eros era filho da deusa do amor, Afrodite, um imortal de beleza inigualável. 81 Afrodite (em grego antigo: Ἀφροδίτ, transl. Aphrodítē) é a deusa do amor, da beleza e da sexualidade na mitologia grega. Sua equivalente romana é a deusa Vênus. 182 organizou: Por que ler Hilda Hilst (2010), traz a noção do pornográfico banal, que se refere à simulação realista e busca o efeito de excitação do leitor. Os livros de Hilda Hilst, em toda a sua obra não cumprem essa função: “ao contrário, eles se dobram todo o tempo sobre si próprios, escancarando a sua condição de composição literária e esvaziando seu conteúdo sexual imediato” (PÉCORA, 2010, p.16). Talvez, por esse motivo (im)previsto, a competência literária de Hilda Hilst, seu compromisso com o trabalho da língua, que ela não tenha conseguido o que queria quando “desistiu do seu projeto de escrever literatura séria” e se lançou numa experiência nova: a de se tornar uma “grande pornógrafa” – imaginando, dessa maneira, conquistar finalmente um público e obter retorno financeiro – o que se tornou uma questão crucial para ela, e que concerne a todos nós – como produzir e poder viver do fruto de seu trabalho. Michel Foucault na História da Sexualidade 2 – o uso dos prazeres (2003), ao estudar a relação dos gregos na Antiguidade com o ato sexual, repara que há uma inquietação que recai sobre essa atividade, pois “o ato sexual perturba e ameaça a relação do indivíduo consigo mesmo e sua constituição como sujeito moral: ele traz com ele, se não for medido e distribuído como convém, o desencadeador de forças involuntárias, o enfraquecimento da energia e a morte sem descendência honrada” (2003, p.124). Ao adentrar o terreno do sexual estamos imediatamente diante de algo desestabilizador. Para os gregos, diz Foucault, essa inquietação gira em torno de três focos: a própria forma do ato, o custo que ele provoca, a morte ao qual está ligado: Seria um erro ver no pensamento grego somente uma valorização positiva do ato sexual. A reflexão médica e filosófica descreve-o como capaz de ameaçar, por sua violência, o controle e o domínio que convém exercer sobre si; de minar, pelo 183 esgotamento que provoca, a força e a vida do homem. Dar a essa atividade a forma rarefeita e estilizada de um regime é se garantir contra os males futuros; também é se formar, se exercer, experimentar-se como um indivíduo capaz de controlar sua própria violência e de deixa-la funcionar nos limites convenientes, de reter em si o princípio de sua energia e de aceitar a morte prevendo o nascimento de seus descentes. (FOUCAULT, 2003, p.114) Para os gregos, portanto, a inquietação com o sexual (a violência, o dispêndio e a morte) tomaram a forma de uma reflexão que não visa uma codificação dos atos, nem a constituição de uma arte erótica, mas a instauração de uma técnica de vida. O que ela procura elaborar não é como numa arte erótica, o desenrolar do ato; também não são as condições de sua legitimação institucional, como será o caso do cristianismo; é muito mais a relação de si mesmo com essa atividade ‘considerada em bloco’, a capacidade de dominá-la, limitá-la reparti-la como convém, diz Foucault (2003, p.125). Para Lacan, no Seminário A lógica do Fantasma, na lição VIII, há uma inadequação do pensamento à realidade do sexo: Que se alguma coisa de Outro, que tem relação com a sexualidade, se manifesta a partir dos pensamentos do inconsciente, é precisamente o sentido da descoberta de Freud, mas também ISTO pelo qual designa A RADICAL INADEQUAÇÃO DO PENSAMENTO À REALIDADE DO SEXO. (...) a linguagem não domina – esse fundamento do sexo enquanto ele está talvez o mais profundamente religado à essência da morte – não domina o que é da realidade sexual. (LACAN, 1967, p.153). Essa colocação de Lacan, de perceber que o fundamento do sexual está religado à essência da morte, o aproxima tanto dos gregos, no sentido de que para eles o terreno do sexual entra num domínio do descontrole e da morte, e por isso convém limitar essa 184 atividade, como apontou Foucault, como da noção de erotismo para Bataille. Mas o que Lacan nos traz como uma importante questão é sobre o pensamento diante do sexual, como uma radical inadequação. Quem comenta essa passagem é o filósofo Vladimir Safatle (2006) dizendo que “O sexual será, para Lacan, presença negativa no sujeito.” (SAFATLE, 2006, p.67), no sentido de que o sexual será “o campo de uma experiência fundamental de inadequação que se revela na impossibilidade de os sujeitos produzirem representações adequadas de objetos de gozo, assim como representações adequadas de identidades sexuais”. E que o advento do sexual será sempre ligado ao trauma vindo da “inadequação radical do pensamento à realidade do sexo.” (Ibidem, p.67). Para exemplificar, Safatle (2009) em outro texto intitulado A opacidade do sexual, coloca uma questão de Lacan a respeito das identidades sexuais, por exemplo, do “homem” e da “mulher” como sendo, “antes de mais nada, significantes cuja realidade é eminentemente sociolinguística” (SAFATLE, 2009, p.53). Nesse sentido, é absolutamente possível uma mulher (anatomicamente falando) ocupar uma posição masculina na sua relação ao desejo. (...) O que Lacan parece dizer é que tal diferença anatômica é desprovida de sentido, ela não é normativa, por não ter força de determinar condutas; ou seja, ela é uma diferença pura. Isto significa dizer que, diante do sexual, sempre nos vemos diante de algo irredutivelmente opaco e resistente a toda operação social de sentido. ‘A sexualidade’ dirá Lacan82, ‘É exatamente esse território onde não sabemos como nos situar a respeito do que é verdadeiro. (SAFATLE, 2009, p.54) 82 (Lacan, Mon Enseignement (Paris: Seuil, 2006, p.32) apud SAFATLE, Vladimir. Lacan. São Paulo: Publifolha, 2009) 185 O campo do sexual está atravessado, portanto, por essas noções que implicam um risco, colocados desde um ultrapassamento dos sujeitos, da possibilidade de um descontrole, a uma radicalidade ainda mais grave, que é a dimensão do trauma, para Lacan, como essa “inadequação radical do pensamento à realidade do sexo.” E necessariamente, a certo confronto dos sujeitos com uma opacidade, uma impossibilidade de saber – “esse território onde não sabemos nos situar a respeito do que é verdadeiro.” (Ibidem, p.54). Gostaria ainda, de retomar o pensamento de Georges Bataille, pois ele vai trazer essa realidade do sexual para dentro do campo de estudos do Erotismo, e grande parte da sua reflexão se dá na relação da sexualidade com a morte. Diz ele no seu livro, As lágrimas de Eros (1984) que: “A essência do homem, seja ela embora denunciada na sexualidade – que é sua origem e seu começo – põe-lhe um problema que só tem por saída enlouquecer.” (1984, p.4). Enlouquecimento, diz ele “que existe na pequena morte”. “A violência da alegria espasmódica entra-me fundo no coração. E ao mesmo tempo esta violência, só de dizê-lo tremo, é o âmago da morte: abrevia-se em mim!” (Ibidem, p.4). Bataille propõe uma oposição entre o trabalho enquanto um meio, seja de subsistência, seja para a acumulação de riquezas, da sua noção de desejo erótico, necessariamente como desejo da poesia e do êxtase que ele vê como um fim. Então diz: “a busca de um fim, implica, ela, própria, desejo que muitas vezes desafia a razão.” (Ibidem, p.4). Bataille vai trazer a noção de Diabólico ao erotismo, ao remontar algo referente ao cristianismo, mas antes, à angústia, desde muito cedo presente na civilização, dos homens que se pintavam nas paredes das cavernas, com o sexo alçado. Essas pinturas rupestres apontam, próximo a esse detalhe, a suspeita de que esses homens já sabiam, ao contrário dos animais que eles pintavam junto, sabiam que iam morrer. Uma imagem comentada por Bataille, a morte pintada no fundo de um poço de 5 metros de profundidade, no interior da caverna 186 de Lascaux, traz a forma de “um homem com cabeça de pássaro que exibe o sexo hirto mas sossobra. Homem deitado à frente de um bisonte ferido que vai morrer mas, enfrentando o homem, perde horrorosamente as entranhas. Por baixo do homem caído um pássaro desenhado com o mesmo traço.” (Ibidem, p.12) Bataille se pergunta se “em tais imagens surgirá realmente algum elemento “diabólico”, a saber: a maldição ligada à atividade sexual?” A pintura só descoberta em 1940 por um grupo de quatro jovens, esquecida, por milhares de anos, conserva, “uma estranheza” (BATAILLE, 1984 pp.7-8) e também “sua beleza animal e fascinante conserva um sentido primeiro: o da sedução e da paixão, do maravilhoso recreio.” (Ibidem, p.13). A estas imagens primitivas, pintadas em tão inacessível poço, traz o caráter mágico dessas pinturas, para o homem paleolítico, evocando assim, a noção do sagrado, mas também de enigma. Algo de inexplicável: Nessa profundidade perdida na escuridão, “afirma-se um acordo essencial e paradoxal da morte com o erotismo.” (Ibidem, p.15). A esta íntima relação entre o desejo erótico e a morte, a certa volúpia e angústia que caminham tão próximas, Bataille reconhece um traço de risível e patético na cena do homem caído com cabeça de pássaro: “Tanto mais estranha, a imagem, por este morto de sexo levantado ter cabeça de pássaro, cabeça animal e tão pueril que obscuramente, talvez e na dúvida, faz ressaltar um lado risível.” (Ibidem, p.14) Há um aspecto também irônico, diz Bataille: “O fundamento do erotismo é a atividade sexual. Ora acontece que esta atividade cai sob a égide de uma proibição. Que inconcebível! Proibido fazer amor! A não ser em segredo. (Ibidem, p.23). Esse risível que recai sobre o sexual diz então de uma angústia, e um ponto de densidade que constitui a questão do sexual e do sagrado. É o proibido, escreve Bataille, o caráter de proibição que recai sobre a atividade sexual, que produz uma iluminação do faixo escuro, e necessariamente por ser transgredido, que provoca a luz: “se o fazemos em segredo o proibido transfigura, ilumina 187 aquilo que proíbe com um clarão ao mesmo tempo sinistro e divino: numa palavra, ilumina-o com um clarão religioso. (BATAILLE, 1984, P.23). Ao erotismo estão ligados de maneira intrínseca o proibido e a transgressão, numa relação íntima com a morte, e nessas relações se estabelece o sagrado. Esses temas dizem ainda, das questões fundamentais que Hilda Hilst colocava a si mesma e aos seus personagens. Não é por acaso que ela investigava as noções de santidade para Rosa Luxemburgo e Simone Weill. Percebo em mim esse enfrentamento, da possibilidade de constituir pensamento, diante da questão sexual que a trilogia pornográfica de HH apresenta. Compartilho com os autores que há algo de ultrapassamento e desmedida, não apenas nas tentativas de apresentação do sexual pelo texto hilstiano, mas nesse campo onde se entrelaçam, erotismo, morte, o sagrado e risível, como angústia. Ao adentrar na leitura das obras, descubro também meus limites de compreensão. Não é simples comentar a trilogia pornográfica. Em primeiro lugar, porque ela é densa, com numerosos elementos, extremamente inteligente e, sobretudo, complexa. Tem sido necessária a leitura de diferentes pesquisadores sobre o período para captar a cada vez um novo elemento que escapa. O que é fundamental dizer agora é que Hilda Hilst riu muito escrevendo a trilogia. A leveza que ela atingiu, porém, não foi compartilhada com seus leitores, muitos dos quais saíram horrorizados e ofendidos após o contato com O Caderno Rosa de Lori Lamby. Segundo Borges, Hilda Hilst confirma pressuposto proppiano, segundo o qual a pornografia nunca é engraçada ou risível: O próprio texto O caderno rosa de Lori Lamby indicia a incompatibilidade entre gozo e riso na fala ingênua de Lori: “O moço pediu para eu dar um beijinho naquela coisa dele tão dura. Eu comecei a rir um pouquinho só, ele disse que não era para rir nem um só pouquinho, que atrapalhava ele se eu risse” (HILST, 2010, p. 23). Ao desejar que a cidade ria com ela e apresentar nos textos situações que do ponto de vista 188 convencional não seriam risíveis, a autora não consegue a cumplicidade dos leitores e acaba rindo sozinha. O riso solitário de Hilda Hilst, na fronteira com o reprovável, por obsceno e despudorado, faz a Trilogia habitar um lugar de entremeio, um lugar de difícil acesso tanto ao leitor não iniciado, o antileitor de Hilda, quanto aos leitores-fãs da obra hilstiana anterior. (BORGES, 2009, p.124) Tanto em Cartas de um sedutor, quanto em O caderno rosa de Lori Lamby, Hilda Hilst vocifera contra o mercado, contra a mercantilização da arte, cansada, depois de 40 anos escrevendo e nenhum retorno financeiro e poucos leitores. HH começa este projeto da Trilogia com duas expectativas: ganhar algum dinheiro e finalmente encontrar o público-leitor. Para o pesquisador Rocha, O caderno rosa aparece como uma “máquina de guerra literária”: Um dos argumentos favoráveis a essa leitura do Caderno como máquina bélica está no fato de que Lori descreve que se prostitui para comprar as coisas que a “Xoxa”; que é um neologismo, pois é um disfarce para não se enunciar o nome da apresentadora Xuxa. Neologismo formado na junção do substantivo Xuxa à fonética do adjetivo “chocho” e o seu significado, pois a apresentadora tem um programa “sem graça” e “vazio” (HOUAISS, 2009) de conteúdo, sendo ela e o seu programa, além do seu público, superficiais. Hilda Hilst satiriza a apresentadora global que ilude a cabeça de crianças para fazer seu merchandising televisivo (ROCHA, 2014, p.161). O que é transgredido no Caderno rosa é a reflexão sobre o ato de escrever disfarçado de pornografia que perpassa todo o livro. Para conseguir vender e sobreviver, o autor tem que se deixar levar pelo mercado editorial e escrever “coisas porcas”. O editor Lalau, que está ligado intimamente ao comércio da escrita, desloca a noção de valor literário do livro para a quantidade de venda, ou seja, de lucro (163). O escritor, ao se 189 entregar ao mercado editorial, seria uma prostituta assim como Lori, que se descreve como uma michê-mirim; Dois modos de se olhar o fazer literário que se entrelaçam em forma de crítica contra o mercado. (ROCHA, 2014, p.164) Hilda, com sua máquina de guerra literária, lança para além de uma pergunta endereçada à literatura – o que é literatura no contemporâneo (será um puro e simples comércio para ganhar dinheiro?), lança uma grande crítica à cultura. No país do futebol, da tradição da pornochanchada83, da indústria do sexo no carnaval, do excesso de imagens erotizadas nas principais emissoras de televisão, o sentido do obsceno é interrogado inteligente e vertiginosamente por esta grande intelectual brasileira que foi Hilda Hilst, através de um murro, de um soco, ao se enveredar pela “pornografia” e soltar o verbo. Entre essa crítica inteligente e a diversão de transgredir o que foi durante muito tempo, seu anseio como escritora, Hilda acertou em cheio o leitor, de tal modo que ela não fez dele um cúmplice, mas um corpo que pode ser levado ao chão, tomado pelo riso, pelo horror, pelo absurdo, pela repulsa. Uma multidão de sensações. O personagem do livro Cartas de um Sedutor, por exemplo, vive do lixo e dos restos dos outros, mas separa os livros que encontra para ler, e a partir dessa imagem, Hilda insere através do tom irônico, farpas. Diz o personagem: Pornochanchada – Tendo como temas recorrentes a malandragem, o adultério, o travestismo, a homossexualidade (entendida como o papel passivo), o tráfico de drogas, a bissexualidade feminina, e se valendo de uma linguagem que, do besteirol, passando pela brejeirice (1 fase) ia até a picardia (2 fase), nascia, no final da década de 1960 o cinema pré-erótico nacional, que se convencionou chamar de pornochanchada. Herdeira direta das chanchadas dos anos 1950 e da repressão instituída pelo AI-5 (em 1968). (FREITAS, Marcel de Almeida. Pornochanchada: capítulo estilizado e estigmatizado da história do cinema nacional, Comunicação&política, n.s., v.XI, n.1, p.057-105, 2003) . 83 190 Pedimos tudo o que os senhores vão jogar no lixo, tudo o que não presta mais, e se houver comida a gente também quer (...) Que leituras! Que gente de primeira! O que jogaram de Tolstói e Filosofia não dá pra acreditar! Tenho meia dúzia daquela obraprima A morte de Ivan Ilitch e a obra completa de Kierkegaard. (...) duas penas de papagaio, uma barriga de Buda, três pedaços de asa de anjo, seis Bíblias e duzentos e dez O Capital (Jogaram fora muito esse último, parece que saiu de moda, creio eu). (HILST, 2009, p. 15 e 16) Vemos que Hilda Hilst denuncia com fina ironia que a grande literatura, assim como a filosofia, viraram lixo. A obra de Karl Marx, O Capital (1867), símbolo da luta pela justiça, das ideologias de esquerda que sonharam, lutaram e ainda lutam por um outro mundo possível também aqui, no romance, foram jogadas fora e em maior número do que as outras obras, assim como os cacos misturados de crenças. De modo simples e genial, essa passagem que diz: uma barriga de Buda, três pedaços de asa de anjo e seis Bíblias, podem indicar também uma relação de consumo de objetos que fazemos uso e depois jogamos fora, demonstrando que tudo foi mercantilizado pela indústria cultural. Sintoma da cultura que Hilda Hilst assinala, dos ares do nosso tempo árido, e aqui fundamental, quando ela nomeia o obsceno: “O que é obsceno? Ninguém sabe ali/ Obsceno é a MISÉRIA, a Fome, a crueldade, nossa época é obscena.” Mas outra indicação importante é dada pela pesquisadora Luciana Borges, quando percebe uma das múltiplas facetas do jogo imbricado de Hilda Hilst na composição da trilogia. É a assunção de Hilda de nomear a sua aventura “pornográfica” como um “resíduo do Potlatch”, mas da qual também devemos duvidar: 191 A decisão radical é pelo autossacrifício mediante o sacrifício da obra: o potlatch, uma prática de troca arcaica efetuada pelos índios americanos, documentada por Marcel Mauss84 e utilizada por Bataille85 na elaboração de uma teoria econômica. A prática de destruição pública das riquezas constitui um modo único de aquisição de poder, por meio da ideia de dádiva: destruindo o que se tem de mais precioso, adquire-se outro tipo de poder, simbólico e, portanto, mais valioso. Desse modo, a decisão de se lançar a textos que não deveriam ser levados a sério trai a ambivalente posição que Hilda assumiu frente a seus leitores, oscilando entre a carência, o ressentimento e a revolta. (BORGES, 2009, p.119) Devemos duvidar de Hilda quando sacrifica sua obra – abandona seu projeto pessoal de ser uma grande escritora – para conferir à literatura, através da sua destruição, outro tipo de poder, o poder simbólico. Duvidamos no sentido de que algo aí não funciona bem. Segundo Borges, essa decisão de não levar mais a sério a literatura faz Hilda Hilst trair a si mesma, na medida em que ela se mantém numa posição de constante ambivalência em relação a isso. Será por esta desconfiança de Borges junto a minha hipótese de que há algo em Hilda Hilst que sobrevive apesar de tudo que quero me debruçar um pouco mais adiante, no trecho que nomeei de Arquivos, seguido do penúltimo subtítulo que dei o nome de Imagem Sobrevivente. Será a partir deles, de numerosos documentos, arquivos, e acompanhada também de outros leitores, comentadores, depoimentos de atores, de amigos e de outros O potlatch foi teoricamente apresentado ao mundo por meio do Essai sur le don, de Marcel Mauss, publicado em Année Sociologique, em 1925. Apud BORGES, Luciana. Narrando a edição: escritores e editores na Trilogia obscena, de Hilda Hilst. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº. 34. Brasília, julho-dezembro de 2009, pp. 117-145. 85 84 BATAILLE, G. A parte maldita, 1975, p. 34 et passim. Apud BORGES, , Luciana. Narrando a edição: escritores e editores na Trilogia obscena, de Hilda Hilst. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº. 34. Brasília, julho-dezembro de 2009, pp. 117-145. 192 pesquisadores que me aventuro a atravessar essa avenida infinita, impossível, mas que exerce como um abismo certa sedução ao ponto cego do poço. A cada vez sou arrebatada pela força das palavras de Hilda Hilst, como quem pega fogo, atingida por uma faísca, por um raio. Essa escrita que carrega em si a potência do fogo faz da operação de leitura e escritura, para mim, um incêndio. O que sobrevive a um incêndio? Ou, como será isso, de permanecer com um incêndio no corpo 86, carregá-lo, estar em plena combustão, mas também em ferida e queimadura? Esta imagem do incêndio reúne a potência do fogo, da combustão que gera luz e calor, mas que, ao tocar a matéria, ele imediatamente a consome, faz uso dos corpos para perpetuar sua chama. Se essa matéria é humana, se for pele, arde, queima, faz ferida. Esse encontro com a literatura de Hilda Hilst carrega, para mim, estas insígnias, e que Derrida definiu de maneira precisa sobre o poema: “Não há poema sem acidente, não há poema que não se abra como uma ferida, mas que não abra ferida também” (DERRIDA, 2006, 115). 86 “...e carregavam um incêndio no corpo até o termo de suas vidas precárias.” Manoel Ricardo de Lima. “Partout”. In: Jogo de Varetas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012 ,p.34. 193 IV – ESCRITA “Escrever ainda é humano”. Essa frase faz parte de “Tabelionato”, uma das histórias do livro Jogo de Varetas, do poeta e escritor brasileiro Manoel Ricardo de Lima. Ali onde os gestos dos quase personagens são ora melancólicos, ora convulsos, encontrei essa frase que tenta garantir aos rarefeitos e sem nome, desencontrados, múltiplos às vezes, de si mesmos, “somos uns quinze” uma condição da escrita como uma espécie de resto, que garantiria talvez uma única certeza: “do último e calcinado gesto com a mão: escrever ainda é humano” (LIMA, 2012, p.47). É com essa força de sobrevivência, e de sobrevivência de um gesto (com a mão), que eu gostaria de lançar luz sobre a escrita. Escrever implica um certo apagamento. Toda escrita verdadeira, que constitui um sujeito, segundo Sousa (2001, p.174), esta é a sua hipótese, implica uma certa condição de exílio daquele que enfrenta o desafio de escrever. Sousa vai dizer ainda que a tensão se estabelece justamente numa diferença importante entre aquele que se põe a escrever e o sujeito que este escrito produz. Esta é exatamente a afirmação de Blanchot em O livro por vir (2005) acerca da escritura. Para ele algo acontece neste ato, do qual, não se pode voltar o mesmo. O escritor e crítico vai falar sobre o que ele chamou de o segredo da narrativa, que consiste na formulação de que “a narrativa não é o relato do acontecimento, mas o próprio acontecimento, o acesso a esse conhecimento, o lugar onde ele é chamado para acontecer” (Ibidem, p.8), “acontecimento ainda porvir e cujo poder de atração permite que a narrativa possa esperar, também ela realizar-se” (Ibidem, p.11). Para Blanchot, há uma metamorfose por acontecer no “desejo de dar 194 a palavra ao tempo” (Ibidem, p.12), evocando pela narrativa, um outro tempo, “imaginário”, “canto enigmático que está sempre à distância”. Vai falar sobre um espaço que a narrativa quer percorrer, movendo-se pela transformação que ela própria provoca. Tenho aqui, a indicação de uma distância, ligada à experiência da narração. Muito importante é pensar uma espécie de afastamento de si, um exílio, como indicou Sousa acima, e a travessia perigosa desse acontecimento, no qual alguma coisa não cessa de desaparecer e, assim, não cessa de se escrever. Lúcia Castello Branco, em artigo que discute a literatura a partir de Deleuze e Lacan, traz a ideia do exterior de Blanchot para pensar sobre o neutro. Diz ela sobre ele: “A respeito desse exterior blanchotiano, devemos assinalar de início, que ele não se opõe ao interior, mas antes, como se pode demonstrar através da figura topológica da Banda de Moëbius, é o próprio interior estendido à sua condição de exterioridade” (BRANCO, 2001, p.145). E, seguindo na perspectiva de Blanchot, versa a autora, que neste processo de afastamento da literatura dela mesma, no afastamento da linguagem em direção ao exterior, é onde o sujeito que ali diz eu, dá lugar à neutralidade de um “ele sem rosto” (Ibidem, 149). Mas Lúcia Castello Branco avança, e vai aproximar essa neutralidade de um “ele sem rosto” ao que Lacan denomina de “extimidade”, em que se fundem exterioridade e interioridade. Para a autora, é nesse ponto que se cruzam vida e obra. Utiliza o que ela chama de a “história literária” que Blanchot, no caso, constrói para si, e tomando a singularidade da experiência do escritor, concebe a escrita literária como “uma passagem de vida que atravessa o vivível e o vivido”. Assinala, então, a literatura “não destacada da vida, mas constituindo-se em passagem de vida” (Ibidem, p.147) e que através do vivido e do vivível, atravessa também o passado e o futuro. 195 Operações complexas vão ao encontro de um exterior, onde o eu torna-se ele. “‘Ele’ sou eu convertido em ninguém, outrem que se torna outro, e que, no lugar onde estou, não possa mais dirigir-me a mim e aquele que se me dirige não diga “ele”, não seja ele mesmo” (BLANCHOT Apud. BRANCO, 2001, p.148). A dimensão de acontecimento na escrita vem ao encontro de minha proposição partindo de Hilda Hilst. Reconheço nela, nas suas pesquisas e interrogações sobre a existência, uma espécie de transferência para as obras. Seu estarrecimento diante do mundo é sentido, como que transportado para as personagens. Por meio da literatura, Hilda Hilst encontrou uma maneira de dar curso para suas buscas. Segundo Roland Barthes, a escritura se dá como um satori: “o satori (o acontecimento Zen) é um abalo sísmico mais ou menos forte (nada solene) que faz vacilar o conhecimento, o sujeito: ele opera um vazio de fala. E é também um vazio de fala que constitui a escritura.” (2007, p. 10) Na abertura do livro, em que propõe uma negação da função representativa da linguagem, vemos a palavra se abrindo para uma dimensão paradoxal, onde a ruptura se torna condição para uma passagem, num instante em que as fronteiras se acham movediças – formam corpo, formam rosto, ali, onde texto e imagem se entrelaçam. Barthes escreve: o texto não “comenta” as imagens. As imagens não “ilustram” o texto: cada uma foi para mim uma espécie de vacilação visual, análoga, talvez àquela perda de sentido que o Zen chama de satori; texto e imagem, em seus entrelaçamentos, querem garantir a circulação, a troca destes significantes: o corpo, o rosto, a escrita, e neles ler o recuo dos signos. (BARTHES, 2007, p.9) São bonitas as palavras que Barthes utiliza para situar uma espécie de ruptura, o vacilo do sujeito que escreve, ao laborar o vazio. 196 Vazio de fala que implica e constitui a escritura. Para o campo da psicanálise, a escrita se dá como uma operação de criação de si e que necessariamente implica uma relação com o corpo e com o inconsciente. Nesse trabalho da letra e do inconsciente, entra em jogo algo muito primordial, que é a própria constituição do simbólico, no campo da linguagem. Para entender de que modo isso se passa, é preciso compreender que algo acontece na passagem do concreto do mundo para a construção simbólica, algo que alguns psicanalistas nomearam como uma experiência de perda, ou o contorno de um vazio. Até mesmo a indicação de sutura do vazio como uma operação sempre recomeçada, e que implica na noção da escrita como acontecimento. Acontecimento em que o apagamento e o desaparecimento do eu entra em questão. É um momento de suspensão no qual o traçado da letra é entendido ao mesmo tempo como uma ação de inscrição e escavação. Lacan, no seu texto Lituraterra, de 1973, vai conceber a letra como um litoral: “Não é a letra... litoral mais propriamente, ou seja, figurando que um campo inteiro serve de fronteira para o outro” (LACAN, 2003, p.18). Sobre essa passagem, Rivera (2005, p.87) traz a referência de Lacan à caligrafia chinesa, onde “pintura e escrita a um só tempo permite-nos perceber na letra sua dimensão de gesto do corpo em que esses dois tempos se embutem e distendem”. Diz ainda Rivera (Ibidem, p.88) que: “A escrita é rasura e supõe um traço anterior, o traço no corpo.” Tem-se aqui uma operação bastante complexa. Retomemos o que Edson Sousa propõem: “toda escrita verdadeira, que constitui um sujeito implica uma certa condição de exílio daquele que enfrenta o desafio de escrever” (SOUSA, 2001, p.174). Esse exílio diz do apagamento-desaparecimento que está embutido na noção da escrita como escavação, que cava um buraco no eu, quando o eu se torna “um ele-sem-rosto”, mas, ao mesmo tempo, na medida em que a escritura se dá ela faz a marca da letra como inscrição que funciona como marca e registro. É uma operação dupla e simultânea e, por isso, complexa, em que a condição de constituição de si 197 – a criação literária, neste caso, de Hilda Hilst – implica um certo apagamento-exílio. E aí pontuo mais uma vez, que a escrita traz consigo uma dimensão corporal e inconsciente na passagem da vida para obra e da obra para vida. Portanto, a ideia de traço, a operação da letra implica necessariamente uma rasura, e isso, diz Sousa, quer dizer que “a escrita é a materialização da experiência da perda.” (SOUSA, 2007a, p. 240). Somos confrontados, portanto, com a perda, em que está implicada a perda de algo que nos diz respeito, com uma queda que nos antecede, no momento mesmo em que nos constitui. De grande importância para esta leitura, será pensar o jogo do carretel observado por Freud. Didi-Huberman, no seu livro O que nos vemos e o que nos olha (1998), em especial o quinto capítulo que tem por título A dialética do visual ou o jogo do esvaziamento, vai pensar o aspecto da perda que entra em questão no famoso jogo do carretel, o Fort – Da, observado por Freud, enquanto seu neto de dezoito meses jogava para longe um carretel, emitindo o som “óóó”, próximo do fort, advérbio alemão significando “longe”. E, num segundo momento, ele trazia para si o objeto, emitindo um jubiloso DA (algo como “aí está!)”. Famosa passagem que situa a instauração do simbólico para a criança, ao simular o controle sobre o objeto, no momento mesmo da ausência da mãe. Mas o que Didi-Huberman observa, é justamente, um fundo de crueldade posto em questão. No mesmo texto em que Freud fala dessa experiência do seu neto, ele faz comentários a respeito do término da guerra mundial e seu terrível saldo. Comentário tomado e em seguida largado, diz o autor, nos oferecendo a leitura de que esse jogo do paradigma infantil de lidar com a ausência da mãe, nada tem de inocente: “O jogo risonho talvez se mostre aqui como um além do pavor, mas não pode deixar de ser lido, ao mesmo tempo, e em sua exposição mesma, como um repor em jogo o pior” (1998, p. 80). E Didi-Huberman vai dizer que é “a identidade imaginária da criança que vai se instaurar” naquele momento. Afirma o 198 caráter frágil do objeto carretel que, a qualquer momento, pode se desfazer, romper o fio ou mesmo ser deixado de lado pela criança, ressaltando nessa atmosfera de fragilidade tanto a dimensão de resto da operação que ali está em jogo, como a dimensão mesma do jogo, que só acontece pela ausência que o representa. Retoma o paradoxo do próprio conceito do simbólico, como a morte da coisa, enlaçando o entendimento do processo de instauração do simbólico ao processo do luto. E diz então sobre o sempre tornar a cair, do jogo, como um paradoxo, o qual, nesta repetição da pulsão, inclui no seu cerne um momento de imobilidade mortal. Momento central da oscilação, entre diástole e sístole – o antro inerte aberto subitamente no espetáculo “vivo” e mesmo maníaco, de um carretel sempre lançado para longe e sempre trazido de volta a si. Momento central de imobilidade, suspensiva ou definitiva – uma sempre oferecida como memória de outra –, em que somos olhados pela perda, ou seja, ameaçados de perder tudo e de perder a nós mesmos. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.86) Aqui nesta passagem, poderíamos entender certa função que cumprem tanto a literatura como a arte como uma tentativa de acolher essa condição de exterioridade radical, certo apagamento, nomeou antes Edson Sousa, capaz de constituir um sujeito. Essa possibilidade iminente de perder algo íntimo que entra em jogo como a condição mesma da criação e da instauração de novas linguagens. René Passeron (2001, p.11) vai pensar nesse movimento propondo que toda obra de arte é um curativo do vazio, na medida em que a arte torna-se uma prática de enfermeiro do vazio, mas este vazio jamais cicatriza. Para alguns escritores, como Hilda Hilst, por exemplo, a escrita vai ser o próprio lugar de existência, um lugar onde a criação está constantemente em jogo e num duplo sentido. Aqui a concepção de Lúcia Castelo Branco da escrita literária como “uma passagem 199 de vida que atravessa o vivível e o vivido” parece se encaixar ao trabalho de pesquisa de Hilda Hilst, em que vemos a singularidade da experiência do escritor que assinala a literatura “não destacada da vida, mas constituindo-se em passagem de vida” (BRANCO, 2001 p.147). Em notas pessoais de 1988, na sequência de poucas páginas ela toma nota de diversos escritores e pensadores, entre eles estão: Ernest Becker, Erick Bentley, Simone Weil. Thomas Mann, Otto Rank, Beckett, Anatol Rosenfeld. Então, escreve: O viver no mundo de hoje uma coisa sinistra com aparência de ordenado. Há um colocar-se no mundo{ A Paixão A vontade de conhecimento Estado de pergunta Que modifica o comportamento do homem em relação a tudo e em relação a si mesmo. As pessoas parecem querer livrar-se de si mesmas. Não tratar a carne como muitos tratam o ouro, às escondidas Sair de: [um existir colado aos conceitos]. (HILST, Arquivos CEDAE 2) Para Hilda, a escrita literária vinha de uma busca: “Escrevo para acordar o homem” (Arquivos CEDAE 2). Numa entrevista de 1980, diz: 200 O que existe é que eu escrevo movida por uma compulsão ética, a meu ver a única importante para qualquer escritor: a de não compactuar. Para mim, não transigir com o que é nos imposto como mentira circundante é uma atitude visceral, da alma do coração, da mente do escritor. O escritor é o que diz “Não”, “Não participo do engodo armado para ludibriar as pessoas”. No momento em que eu ou qualquer outro escritor resolve se dizer, verbalizar diante do outro, para o outro, o leitor que pretender ler o que eu escrevo, então escrever sofre uma transformação essencial” Que tipo de transformação? “Uma transformação ética que leva ao político: a linguagem e a sintaxe passam a ser intrinsecamente atos políticos de não pactuação com o que nos circunda e tenta nos enredar com seu embuste, a sua mentira ardilosamente sedutora e bem armada. (HILST, Arquivos CEDAE 2) A criação que estava em jogo para Hilda Hilst acontecia na linguagem, portanto, no âmbito literário ao assumir o trabalho com a língua, e, ao mesmo tempo, era a uma busca amalgamada com a transformação do homem. Numa das anotações dos arquivos, da qual fiz uma fotografia (página 192) vê-se uma pesquisa de Hilda Hilst na qual ela está à procura de uma medida. Vê-se escrito: “Mudar o coração do homem”. “Homem político”. Embaixo está escrito medida, e algumas medidas possíveis são: “paixão” “vencer a vaidade”. Ela estava estudando as aproximações e as diferenças de ideia de santidade em Simone Weil87 e em Rosa Luxemburgo88. 87 Simone Weil (Paris, 3 de fevereiro de 1909 — Ashford, 24 de agosto de 1943) foi uma escritora, mística e filósofa francesa, tornou-se operária da Renault para escrever sobre o cotidiano dentro das fábricas. Lutou na Guerra Civil Espanhola, ao lado dos republicanos, e na Resistência Francesa, em Londres. Disponível em: Acesso em 15/07/2014. 88 Rosa Luxemburgo ( Za mo ść , 5 de março de 1871 — Berlim, 15 de janeiro de 1919), foi uma filósofa e economista marxista polonesa, alemã. Tornouse mundialmente conhecida pela militância revolucionária ligada à Social-Democracia do Reino da Polônia e Lituânia (SDKP), ao Partido Social-Democrata da 201 Essa relação radical que a escritora Hilda Hilst assume na sua escrita de fazer da escritura um compromisso ético e político por excelência nos aproxima da noção de escritura pensada por Maurice Blanchot, no seu livro A conversa infinita 2 – A experiência limite (2007). Ali ele vai pensar a escritura como uma súplica, na qual está em jogo o que há de mais visceral a ser dito, quando o homem se depara com uma única possibilidade: se escreve para não morrer. Alemanha (SPD) e ao Partido Social-Democrata Independente da Alemanha(USPD). Participou da fundação do grupo de tendência marxista do SPD, que viria a se tornar mais tarde o Partido Comunista da Alemanha (KPD). Disponível em: Acesso em 15/07/2014. 202 203 f1gura 38.Andrea Frid Acesso em 13/07/2014. 219 palavra não saia na capa do livro devido ao pudor de falar dos orifícios que temos abaixo da cintura. Mas eu acho que deveria ter começado a minha literatura por aí, com um percurso diferente. Essa é uma brincadeira, um livro pueril, a minha despedida da literatura brasileira, mas é como acho que eu deveria ter escrito a vida inteira porque tenho a impressão de que vou ser lida pela primeira vez. O livro terá desenhos do Wesley Duke Lee, conotações políticas. É uma despedida sem ressentimentos. (Arquivos CEDAE) (grifos meus) Também um grande desânimo perpassa a escritora, que se dedicou à literatura com fervor, que escolheu viver para escrever e consolidar a sua obra. Diz também nessa mesma entrevista: Correio do Povo – É verdade que você vai parar de escrever? Hilda Hilst – Estou me despedindo da literatura. Trabalhei 40 anos e não consegui fazer o que eu mais desejei: me comunicar. O D.W. Lawrence tem um personagem em ‘O amante de Lady Chaterly’ que desejava ser um escritor, que queria escrever, mas escritor é aquele que tem leitores. O escritor é como as pessoas que ficam em determinado ponto esperando pelo ônibus e acabam por perdê-lo. Eu fiquei na fila do ônibus por 40 anos e perdi o ônibus. Não acontece nada no meu sentir, ninguém leu a minha obra. É difícil a pessoa pensar, pensar faz uma ferida. A futilidade toma conta do homem, é um estado violento e você não consegue tirar a pessoa desse estado. Embora eu tenha tentado fazer isso durante todos esses anos. (Arquivos do CEDAE – 4a) 220 Em 1990, quando do lançamento do primeiro livro do que viria a se constituir em sua trilogia erótica/pornográfica, Hilda Hilst concedeu uma entrevista para a TV Cultura91: Entrevistadora – Hilda, Lori Lamby é um ato de rebeldia? Hilda Hilst – É um ato de agressão. Não é um livro é uma banana a Lori. Que eu estou dando para os editores, para o mercado editorial. Porque durante 40 anos eu trabalhei a sério, tive um excesso de seriedade, de lucidez e não aconteceu absolutamente nada. E agora acho que as pessoas precisam ser acordadas. É muito importante se a pessoa tá dormindo muito tempo você de repente faz uma ação vigorosa pra que a pessoa se levante. Em outra entrevista, três anos mais tarde (1991), As palavras abaixo da cintura, Hilda já estava vivendo o momento de publicação dos livros, por Hussein Rimi92: HR – A história de publicar livros pornográficos é uma estratégia de marketing? HH – É claro que sim porque eu penso assim: é um absurdo você fazer obras-primas assim como eu faço, e guardar tudo na gaveta, esperando que daqui a cinquenta anos as pessoas falem de você. O escritor, acima de tudo, quer ser lido. O Léo Gilson Ribeiro ficou muito magoado por eu ter escrito esses livros. Ele me disse: “Pensa no Kafka, que levou anos para publicar um livro.” Mas com todas essas formas de divulgação que um livro tem é um absurdo pensar assim. Porque, se você está vivo, a sua vontade é de se comunicar com o outro. 91 92 Disponível em: Acesso em: 22/03/2015 Palavras Abaixo da cintura. In: DINIZ, Cristiano (Org.). Fico besta quando em entendem: entrevistas com Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2013, p.139-141. 221 HR – Você sempre vendeu muito pouco seus outros livros. Quanto a mais você vendeu com O caderno rosa de Lori Lamby e com Contos d’escárnio? HH – Eles fizeram edições pequenas como a de todos os meus livros, mas a surpresa foi que eles venderam as duas edições todas, de 2 mil exemplares cada uma, em tempo recorde. Isso nunca tinha acontecido comigo antes. HR – Junto com esse livro pornô você lançou Amavisse, um livro de poesia. Quanto vendeu? HH – Acho que apenas uns seis amigos leram [risos]. HR – Você nunca se sentiu violentada por escrever esse tipo de coisa? HH – De jeito nenhum. Foi uma aventura muito divertida dentro da minha carreira, eu estava realmente muito triste. Eu sei que escrevi um poema da melhor qualidade, fiz uma revolução dentro da literatura brasileira, foram anos de trabalho para eu dar o meu recado e não obtive resposta. Quando surgiu essa ideia, eu comecei a escrever a Lori Lamby, para mim foi uma experiência radical e divertida. Com esse tipo de literatura, você vê a reação imediata das pessoas. Eu recebo cartas assim: “Adorei o seu livro imundo, passei noites adoráveis.” E com isso eu estou me divertindo até hoje. HR – Como é ser vista como uma escritora pornô? HH – Estou achando muito engraçado e ao mesmo tempo estou impressionada. Eu era uma espécie de KGB literária, que ninguém lia, e agora, segundo o jornal da tarde, passei a ser uma das malditas de todos os tempos [risos]. Ficou uma situação terrível, porque eu não sei onde me situar. (...) 222 HR – A Folha de S. Paulo então é puritana? HH – Tudo o que a Folha escreveu sobre mim é uma grande bobagem. Eu nunca escreveria basicamente por dinheiro, como eles colocaram. Nunca ter sido lida, isso é o que me perturba. Acho que os críticos têm problemas para falar sobre toda essa aquisição histórica da mulher. Se uma escritora tem um discurso mais fundo, denso, eles têm medo de tocar. No mundo literário eu me sinto como se vivesse na época vitoriana. Nessa segunda entrevista, Hilda Hilst está vivendo o acontecimento que sempre esperou: reconhecimento e leitores. Mas sobre a questão financeira se defende: “Eu nunca escreveria basicamente por dinheiro”. Declaração que compreendo no sentido em que, para Hilda Hilst, a literatura nunca foi comércio, foi uma dedicação à língua, dedicação de toda a sua vida. Mas o modo como afirma que sim, que também é uma estratégia de marketing pode ser pensando dentro de um efeito de provocação da escritora que necessariamente compõe a escrita da trilogia pornográfica, afinal é contra este destino de mercantilização da cultura que Hilda se rebela. E o modo que encontra para fazer isso parece ser misturando-se a ele. Hilda Hilst quer acordar seu leitor, quer atingi-lo em cheio, quer despertá-lo de um sono letal. Era 1993, e Hilda já havia escrito sua trilogia pornográfica, já havia causado certo furor e dado muitas entrevistas. No momento, escrevia crônicas para o jornal de Campinas, onde a toda semana recebia cartas escandalizadas e ofendidas de seus leitores. Finalmente as respostas eram mais imediatas, mas a venda dos livros ainda era inexpressiva. Sobrevivia do salário do jornal e de um programa da Universidade de Campinas (UNICAMP), como anotou na agenda no dia 30/04/1993: 223 Incrível! Pensar que eu tenho 40.000 mts² que valem 600.000 dollars e que não tenho dinheiro a não ser os 30.000 cruzeiros da Universidade e 6.000 do Correio Popular. Que não recebo nem um tostão dos meus livros. Nem o da Itália, a Lori Lamby já publicado lá há + de 1 ano. (Arquivos CEDAE – 3) Em entrevista para o poeta Álvaro Alves de Faria, publicada na revista Caros Amigos de dezembro de 1998, Hilda Hilst desabafa: “Não escrevo mais”. A escritora com então 68 anos “é uma pessoa ressentida e sem nenhum sonho”. “Falar o quê? Nada tem a falar para ninguém.” “Está cansada de falar. De escrever. Escreveu a vida inteira. Quem lê Hilda Hilst? Não esconde o desconforto. É uma dor que não merecia.” (FARIA, 1998, p.13) Era 1998. A Editora Globo ainda não havia comprado os direitos de publicação das obras completas de Hilda, o que faria três anos mais tarde, por iniciativa do melhor amigo, José Luis Mora Fuentes. Seu teatro continuava inédito. A partir do ano de 1999, quando passo a residir na capital, procuro em livrarias e sebos, mas não encontro livros para comprar da escritora em Porto Alegre. Numa passagem muito rápida em Campinas, em novembro de 2001, encontro numa pequena livraria três livros e compro todos. Em fevereiro de 2002, encontro um exemplar de poemas93 na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Tiro xerox e guardo numa pasta junto a reportagens de revistas e jornais e material impresso encontrado na rede. 93 HILST, Hilda. Sete cantos do poeta para o anjo (desenhos de Wesley Duke Lee). São Paulo: Massao Ohno Editora, 1962. 224 Aqui trago um depoimento94 do grande amigo de Hilda, o escritor José Luis Mora Fuentes, que morou lá, desde 1968, na Casa do Sol, e era quem recebia as pessoas nos últimos anos antes de falecer: Ela não foi comunicada ou lida antes porque ela não tinha uma boa distribuição. Tanto que os amigos da Hilda às vezes se reconheciam porque o cara tava com o livro da Hilda na mão. Então falava: você é amigo da Hilda, né? Porque pra ele ter o livro da Hilda era ela que tinha dado. E era verdade. Ela antes de morrer ela percebeu o começo disso, ela chegou a ver... porque com a editora globo foi muito rápido. Uma aberração né, porque começou a existir para comprar na livraria. Antes saiam críticas maravilhosas da Hilda nos jornais, que a crítica sempre foi muito boa pra Hilda, mas a pessoa ia comprar o livro e não achava. Uma vez a própria Hilda quis... entrou numa livraria para comprar um livro dela porque ela queria dar pra uma pessoa e tava sem, aí ela chegou na livraria e falou: você tem a Hilda Hilst? E o cara falou, não a gente não trabalha com estrangeiros ahahaha e ela saiu de lá chocada”. (Fuentes, José Luis Mora, site). Hilda Hilst, na entrevista “Hilda Hilst, uma conversa emocionada sobre a vida, a morte, o amor e o ato de escrever” , em 1986, comenta: 94 Depoimento de José Luís Mora Fuentes, em entrevista concedida a Rede Minas, gravada em 05/07/09, três dias antes do seu falecimento. Disponível em: Acesso em 19/02/2015. 225 Se vejo uma pessoa velha, encarquilhada, paupérrima, esguendelhada, já quero fazer alguma coisa. E as pessoas dizem, mas que é isso?, vai começar a levar as senhoras velhas para casa, os meninos, os cachorros, não dá, esquece. Sabe, sinto um desconforto vivencial cotidiano diante do mundo e do problema dos outros, e isso foi dificultando o meu existir cotidiano. E escrever é essa explosão de dizer as coisas como eu acho que elas tem que ser ditas, completamente, para passar para o outro a intensidade, a perplexidade do ser humano completamente incendiado de emoções, de procuras, perguntas e buscas. (DINIZ, 2013, p.87) Gostaria de apresentar, inclusive, uma terceira entrevista, concedida por Hilda quase dez anos depois de publicar O caderno rosa e Contos d’escárnio, ambos de 1990, ao Instituto Moreira Salles (IMS)95, em 1999. Num outro contexto, as declarações de Hilda estão diferentes: CADERNOS – A sra. costuma dizer que sua decisão de escrever literatura licenciosa foi uma resposta à pequena vendagem de seus livros. Teria ficado indignada ao saber que a escritora francesa Régine Deforges ganhara 10 milhões de dólares com o best-seller A bicicleta azul, uma espécie de ...E o vento levou açucarado. Então a sra. resolveu escrever, nas suas palavras, “coisas que todo mundo entende” e falar da problemática do sexo de um modo novo, sem véus, com toda a crueza. Mas nós perguntamos: isso não parece racionalização? Um modo psicológico de explicar o fenômeno de outra ordem que faz parte da dinâmica interna de sua obra? Em outras palavras, a pornografia já não estava inscrita, de algum modo, no corpo de trabalhos mais precoces, aflorando em resultado do próprio amadurecimento de sua literatura? 95 Cadernos de Literatura Brasileira – Hilda Hilst – número 8 – outubro de 1999, publicação semestral do Instituto Moreira Salles (IMS). 226 Hilda Hilst – Eu estava muito atrapalhada, só recebia dinheiro da Universidade de Campinas. Não ganhava praticamente nada. De repente, leio sobre aquela mulher ganhando todo aquele dinheirão. MILLÔR FERNANDES – Você me pediu, através do Massao Ohno, que ilustrasse seu livro “pornográfico” [O caderno rosa de Lori Lamby, 1990]. Com exceção de uma ou duas ilustrações, não gostei do que fiz. Perdão, pois, tardio. Agora me diz, o livro foi uma tentativa de ser “popular”, pura sacanagem, ou uma real experiência de outro campo, outro gênero? E o resultado? Hilda Hilst – O que eu posso te dizer? Eu quis me alegrar um pouco. Eu tinha uma certa alegria sabendo que escrevia muito bem, mesmo não sendo lida. Mas de repente eu quis me alegrar. Comecei a sentir um afastamento completo de todo mundo. Eles nunca me liam, nunca. Então eu decidi fazer o livro. CADERNOS – A idéia, então, era tentar conseguir vender mais livros mesmo? Hilda Hilst – Tentar conseguir, mas eu não consegui. Pensei: “Vou fazer umas coisas porcas”. Mas não consegui. CADERNOS – Vamos insistir, então. Tudo isso não é uma racionalização, um mero recurso psicológico para explicar o fenômeno que está inscrito na sua literatura, quer dizer, a licenciosidade, o obsceno? O erótico já não estava presente antes em sua obra? Hilda Hilst – É, mas eu queria fazer uma coisa que as pessoas gostassem de ler. Não adiantou. Diziam que eu era dificílima na literatura pornográfica. 227 2.2.8 figura 39.Andrea fricke Duarte,HH_09-Imagem do arquivo, 2013. fotografia digital. 15 cmx 20 em 2.2.8 =-"'-:.. 0- . \J-e. \ AJ.._ -==·--..:: L --' t.........): C'ú..)\. .- t_ .._ '(""""Col.... '-4.-\.. t . }:I' '" "- • c:..r':t . ..,. ,.::-o_ J.- <...<:.I ._...._ tC.--<...-(..:-_.--_/ c --:::- }J I ' J ---"'• \ 1_; }CL.....) .._"""'"'' 1'--)'-Figura 40. Andrea Frieke Duarte,HH_22 -Imagem do arquivo,2013. Fotografia digitaL 15 em x 20 em 229 VIII. IMAGEM SOBREVIVENTE – OU, REFLEXÕES SOBRE A IMAGEM E são os fantasmas, por uma insistência que lhes é própria, que desviam as formas, e empurram o artista à repetição. (PASSERON, 2001, p. 9) Pesquisar Hilda Hilst ainda, uma vez mais, diz algo que fica, como nomeou René Passeron (2001, p.9): “Entre uma insistência que derrapa e jamais finaliza, sob a ideia obscura que o perfura”. Diz isso do artista que retoma seu trabalho, que recomeça sem cessar a nova obra. Essa insistência diz de algo que me ultrapassa, que não descobri ainda o nome que tem. Diz também de Hilda Hilst e sua procura. Este isso que me interroga, talvez a não evidência do que seria o obsceno, o que resiste a sua constante atualidade; as próprias pesquisas de HH sobre o erotismo e sobre a noção de obscenidade que encharca as obras, que vai ganhando densidade com o passar dos anos e com a insistência da escritora. Escrever uma tese, me parece, é aprender a fazer recortes no tempo, e depois reuni-los outra vez, tentar formar imagens. No período em que me dedico a esta escrita, penso em algumas imagens. Nenhuma delas eu pensei sozinha. Didi-Huberman me ofereceu a imagem do encontro de diferentes fatias do tempo como uma possibilidade de compreender ou de ensaiar relações entre um tempo que se passou com o tempo presente. Desta imagem, surgiu outra, a imagem da sobreposição de camadas, e da 230 espessura. Imagem de uma materialidade, do que seria o tempo, como aquilo que se deposita – uma coisa sobre a outra. Penso então no texto de Freud sobre os diferentes extratos. Didi-Huberman começa a pensar o conceito de imagem sobrevivente a partir do historiador de arte Aby Warburg (1866-1929). Esse que fez uma aposta filosófica “logo no início de sua ‘ciência sem nome’ uma aposta que constituiu, em primeiro lugar, em pensar a imagem sem esquematiza-la” (2013, p.173) por compreender nela (na imagem) suas complexidades e multiplicidades temporais. Didi-Huberman identifica neste modelo uma quebra na escrita mesma da história das artes, “no qual os tempos não eram calcados em estágios biomórficos, mas se exprimiam por extratos, blocos híbridos, rizomas, complexidades específicas, retornos frequentemente inesperados e objetivos sempre frustrados” (Ibidem, p.26). Essa escrita da história da arte, inaugurada por Aby Warburg, coloca em cena um saber que se inquieta, que se perturba, que, “ao contrário de um começo absoluto, uma tábula rasa, é antes, um turbilhão no rio da disciplina, um momento agitador, depois do qual, o curso das coisas se haverá desviado profundamente, ou até transtornado” (Ibidem, p.26). Como uma recusa, de um começo, Didi-Huberman se lança a estudar Aby Warburg como uma obsessão assumida, e a defende definindo-a da seguinte maneira: Obsessão – “É algo ou alguém que volta sempre, sobrevive a tudo, reaparece de tempos em tempos, enuncia uma verdade quanto à origem. É algo ou alguém que não conseguimos esquecer. Mas que não podemos reconhecer com clareza” (Ibidem, p.27). Ao definir o termo, Didi-Huberman nomeia um pouco o modo como me relaciono com a escrita hilstiana, e corresponde àquilo que a própria escritora dizia de sua busca através da literatura. Por exemplo, no livro A Obscena Senhora D a pesquisadora Clara Silveira Machado (1993) contou 359 perguntas de cunho existencial, na busca de Hillé, a personagem na procura de seu Deus. 231 Uma Obsessão: Hilda Hilst. Obcecar. [Do lat. obcaecare.]. V. t. d. 1. Tornar cego; cegar. 2. Deslumbrar, ofuscar. 3. Obscurecer com trevas (o espírito); cegar. 4. Turvar o entendimento de; perturbar, o fuscar: “Ou tro ra o mistério ap en as me o b c e c a r a como mistéri o ; evidencian do -se, tamb ém, a min h a alma se de sen so mbr aria. ” (Mário de Sá Car n eiro , A confissão de Lúcio, p.91.) 5. Induzir ao erro. 6. Desvairar, alucinar, cegar, enceguer, encegueirar: A paixão obcecou-o; Ficou obcecado pela cobiça. 7. V. Obsedar (2) A empresa obcecou-o a ponto de afastá-lo de suas ocupações habituais. 8. Tornar contumaz no erro. P.9. Tornar-se contumaz no erro. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1975 p. 936). Obsessão. [Do lat. obsessione.] S. f. 1. Impertinência, perseguição, vexação. 2. Fig. Preocupação com determinada idéia, que domina doentiamente o espírito, e resultante ou não de sentimentos recalcados; idéia fixa, mania. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1975 p. 937). Há algo em Hilda Hilst que me convoca a produzir pensamento, eis que ela retorna, e me assalta de tempos em tempos, se comportaria como um fantasma que me assombra? Aby Warburg é nomeado por Didi-Huberman como “nosso fantasma”, pois ele vai defender a ideia de um modelo fantasmal, no qual o que está em jogo não é uma linearidade histórica a partir de um mesmo 232 começo, mas antes, aquilo que se exprime “por obsessões, ‘sobrevivências' remanências, reaparições das formas” (2013, p.25). 233 Didi-Huberman vai chamar esse modelo fantasmal da história, ainda como modelo psíquico ou modelo sintomal. São apresentadas pelo menos três pontos iniciais que justificam essa nomeação. Um deles será o interesse de Warburg pelas zonas fronteiriças do conhecimento – “essa obra continua sem contornos definíveis, ainda não encontrou seu corpus. Ela assombra cada livro da biblioteca – em razão da famosa ‘lei da boa vizinhança’ que Warburg havia instituído em sua classificação” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.28). Essas fronteiras entre as disciplinas colocou Warburg como aquele que atravessa as paredes da história da arte, escreve DidiHuberman (2013, p.34): “Nesse espaço rizomático – que, em 1929, abarcava 65 mil volumes –, a história da arte como disciplina acadêmica foi posta a prova de uma desorientação organizada: em todos os pontos em que havia fronteiras entre disciplinas, a biblioteca procurava estabelecer ligações”. Outro ponto é a particularidade do olhar de Warburg para as obras, para as imagens. Ele via uma “sobrevivência da Antiguidade”, por exemplo, “sobrevivência dos deuses antigos, dos saberes astrológicos, das formas literárias, do temas figurativos, etc.” (Ibidem, p.68). Aqui começa a se delinear o conceito, a Nachleben, estrutural diz DidiHuberman, para o pensamento de Warburg: “Dizia respeito tanto ao Renascimento quanto à Idade Média: ‘Cada período tem o Renascimento da Antiguidade que merece’, escreveu” (Ibidem, p.69). Logo, a história se torna mais complexa, aparece um outro tempo, e o conceito de sobrevivência acaba por desnortear , desorientar a história, criando anacronismos, “impõe o paradoxo de que as coisas mais antigas às vezes vem depois das coisas menos antigas” e dá como exemplo a astrologia indiana: “a mais remota que existe – encontrou valor de uso na Itália do século XV depois de ter sido suplantada e tornada obsoleta pelas astrologias grega, árabe e medieval” (Ibidem, p.69). 234 Constatar isso é nos rendermos à evidência de que as ideias de tradição e transmissão têm uma complexidade atemorizante: são históricas (Idade Média, Renascimento), mas são também anacrônicas (Renascimento da Idade Média, Idade Média do Renascimento); são feitas de processos conscientes e processos inconscientes, de esquecimentos e redescobertas, de inibições e destruições, de assimilações e inversões de sentido, de sublimações e alterações – termos que se encontram no próprio Warburg. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.70) A partir disso que retorna na história e incorpora os movimentos do tempo sobre os corpos e suas histórias, a partir da perspectiva da sobrevivência ao invés de sintetizar um pensamento, as imagens se abrem e se multiplicam em complexidades. Torna mais difícil de pegar - um fantasmático se apresenta tanto como aquilo que sobrevive à morte, como no que se dá como transmissão das crenças, mesmo que se alterem os sentidos. E o terceiro aspecto do fantasmático proposto por Didi-Huberman se dá em relação ao próprio estilo de Warburg – “em momentos alternados, a preocupação meticulosa com o detalhe histórico e o sopro inseguro da inspiração profética” (2013, p.29). Isso produziu, de certa maneira, certo apagamento do seu trabalho, pois, embora tenha sido reconhecido como o pai fundador da iconologia, “sua obra logo se apagaria por trás do trabalho tão mais claro e distinto, tão mais sistemático e tranquilizador de Panofsky. Desde então, Warburg vagueia pela história da arte como faria um ancestral inconfessável” (Ibidem, p.27). 235 Tanto o conceito de Nachleben – sobrevivência quanto o de Phatosformel, fórmula pathos – além de sustentarem a complexidade de seus objetos de estudo, eles têm uma relação direta com a memória, diz Didi-Huberman (2013, p. 243), operam um trabalho da memória. No capítulo, O ponto de vista do sintoma: Warburg em direção a Freud , Didi-Huberman nomeia a dinâmica que Warburg propõe de leitura das imagens como sintoma. Conta-nos que, no período final da vida de Warburb, nos anos de 1918 a 1929, ele interrompeu a constituição teórica da Nachleben, marcado pela experiência psicótica. Chegou a estar internado num manicômio por quase cinco anos. “Mas não se separa um homem de seu páthos – suas empatias, suas patologias – não se separa Nietzsche de sua loucura e nem Warburg dessas perdas de si” (Ibidem, p.28). Aponta, entretanto, que, nesse período, também surgiu a conceituação freudiana da interrupção sintomática, “verdadeira teoria do contratempo e do contramovimento inconscientes, comunicada por Ludwing Biswanger a seu paciente, que também era (e continuaria a ser até o fim) seu interlocutor intelectual” (Ibidem, p.244). A sobredeterminação dos fenômenos estudados por Warburg poderia ser formulada a partir de uma condição mínima que descreve a pulsão oscilatória das instâncias que sempre atuam uma sobre as outras na tensão e na polaridade: marcas com movimentos, latências com crises, processos plásticos com processos não plásticos, esquecimentos com reminiscências, repetições com contratempos... Proponho chamar de sintoma a dinâmica dessas pulsões estruturais. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.243) A aproximação com a psicologia se dá efetivamente, mas de uma forma “transindividual” – “ele quis operacionalizar uma ideia transindividual do psíquico no campo da cultura das imagens: algo que não se reduzisse a um romance de intenções subjetivas.” 236 (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.247). Associa-se, então, o tempo da sobrevivência como um tempo psíquico, e “por fim, os processos da sobrevivência só podem ser compreendidos a partir de sua “conaturalidade” com processos psíquicos nos quais se manifesta a atualidade do primitivo: daí o interesse de Warburg pelos traços pulsionais ou fantasmáticos, latentes ou críticos, da Pathosformel” (Ibidem, p.248). Isso significa dizer, continua Didi-Huberman, que não apenas a Nachleben deve ser pensada como um tempo psíquico, mas também que a Pathosformel deve ser compreendida como um gesto psíquico. Gertrud Bing reconheceu bem esse traço fundamental: as “fórmulas do páthos”, disse, “tornam visível não uma qualidade do mundo externo, (...) mas um estado afetivo”. E concluiu com a seguinte reflexão de historiadora meio assustada com os pântanos do reino psíquico em que havia acabado de pôr um pé: “Estamos em terreno perigoso”. Mas a exigência warburgiana, mesmo sendo perigosa, estava ali: não se deve traduzir a Pathosformel em termos de semântica – ou de semiótica – dos gestos corporais, mas em termos de sintomatologia psíquica. As “fórmulas do páthos” são os sintomas visíveis – corporais, gestuais, apresentados, figurados – de um tempo psíquico irredutível à simples trama de peripécias retóricas, sentimentais ou individuais. (DIDIHUBERMAN, ANO, p.249) Embora em 1929 já tivesse à sua disposição o conceito freudiano de inconsciente, Warburg, “como se temesse que a ideia substantivada o afastasse da dinâmica que procurava caracterizar, mais uma vez preferiu fazer sua busca pelo amontoado de cobras em movimento: preferiu falar de uma dialética do monstro [Dialetik des Monstrums]” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.254). 237 Aos olhos de Warburg, é essa a fundamental e “inquietante dualidade [unheimliche Doppelheit] de todos os fatos culturais: a lógica que eles fazem surgir também deixa transbordar o caos que eles combatem; a beleza que inventam também deixa despontar o horror que recalcam; a liberdade que promovem deixa vivas as coerções pulsionais que tentam romper. Warburg gostava de repetir o adágio Per monstra ad Astra (Através dos monstros chegar aos astros), da qual a célebre frase freudiana Wo Es war, sol Ich werden parece oferecer uma variação. É preciso dizer ainda que Didi-Huberman se viu frente à necessidade de esclarecer a noção de sintoma para Warburg e no que ela se diferenciava epistemologicamente de Charcot, principalmente por Charcot fazer o uso de imagens para problematizar a histeria. Didi-Huberman coloca que tanto Charcot como Warburg, em relação à iconografia, tiveram um desafio em comum: dominar as diferenças dos sintomas. Mas a montagem do quadro clínico das histéricas de Charcot visava às continuidades e as semelhanças, compreendendo o sintoma como “uma categoria da clínica redutível a um quadro regular e a um critério nosológico bem definido”. “Charcot desejava que o sintoma sempre fosse remetido a sua determinação (traumática, neurológica, tóxica), ao passo que o sintoma em Warburg é uma categoria crítica, que faz explodir o ‘quadro regular’, fazendo do sintoma uma obra constante, constantemente aberta, da sobredeterminação” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.259). Que implicação isso tem? Entender a leitura do sintoma como uma obra sempre aberta, ‘uma obra constante’? Implica necessariamente, uma noção de atualização e movimento, de compreender as imagens como pulsantes, oscilações atuais de diferentes temporalidades. E, por isso, se aproxima de Freud, pois o avanço de Freud em relação a Charcot foi “ uma lição admirável 238 de olhar” nos diz Didi-Huberman (2013, p.262). Quando Freud vê “nas contorções, nas atitudes ilógicas e nos grandes movimentos” do corpo das histéricas uma marca de onde o sintoma “atualizava uma lembrança inconsciente”, eis a passagem: (...) num dos casos que observei, a doente, com uma das mãos, mantinha o vestido apertado contra o corpo (como mulher), enquanto, com a outra, esforçava-se por arrancá-lo (como homem). Essa simultaneidade contraditória condiciona, em grande parte, a incompreensibilidade de uma situação que é, no entanto, muito plasticamente representada no ataque e que, portanto, presta-se perfeitamente à dissimulação da fantasia inconsciente que está em ação. (FREUD, Apud. DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 261262) Será em “Sobrevivências”, o segundo capitulo de seu livro A sobrevivência dos vaga-lumes (2011), que Didi-Huberman, vai lançar luz aos pequenos vagalumes, vai olhar para essa luz fraca e se interrogar sobre essa imagem em movimento. Ele vai pensar na intermitência de uma luz, na pulsação entre o acender e o apagar, tendo os vaga-lumes em sua dança noturna, “uma vocação à iluminação em movimento” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 47-48). Essa luz que se movimenta, que pode desaparecer, como desapareceram os vaga-lumes do olhar de Pasolini, pode reaparecer mais tarde em outra cidade, num outro tempo. Essa oscilação de uma imagem, que num momento está presente, disponível ao olhar, e que, de repente, já não está mais. Quero insistir neste ponto: o confronto entre aparição e desaparição. Será neste intervalo que Didi-Huberman propõe uma reflexão sobre as imagens. Para isso o filósofo, historiador e crítico da arte, resolve unir dois tempos do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini. O primeiro deles, numa carta escrita ainda jovem (1941) a um 239 amigo de sua adolescência, em que Pasolini escreve ver nos vaga-lumes “lampejos de inocência e desejo”. Mais tarde (1974), Pasolini escreve um texto, chamado O poder vazio na Itália, mas o título que ficou famoso, nos conta Didi-Huberman, foi O artigo dos vaga-lumes (L’articolo dele luciole). Neste artigo, Pasolini denuncia o comportamento imposto pelo consumo como capaz de “remodelar e deformar a consciência do povo italiano, até uma irreversível degradação” (PASOLINI, Apud. DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 30-34), reduzindo as diferenças entre as pessoas e vendo tudo ser transformado em mercadoria. Os vaga-lumes desaparecem não na noite, diz Didi-Huberman, mas “na ofuscante claridade dos ‘ferozes’ projetores: projetores dos mirantes, dos shows, dos estádios de futebol, dos palcos de televisão.” Será seu amor pelo povo que ganha uma tragicidade, quando Pasolini diz então “que o espírito popular desapareceu”. “Com a imagem dos vaga-lumes, é toda uma realidade do povo, que aos olhos de Pasolini está prestes a desaparecer” (Ibidem, p.34). A partir da desesperança política a que foi acometido o cineasta italiano ao ver nos vaga-lumes a tragédia de seu desaparecimento, Didi-Huberman fala ainda da memória e da função política das imagens, de uma escolha de confrontar dois tempos da imagem e que podem produzir pensamento. O filósofo se interroga o que faz Pasolini, num momento, ver nos vaga-lumes “lampejos de inocência e desejo” e, num outro momento, ver neles o desaparecimento de seu povo amado. Procurando na produção poética do cineasta e nos incidentes da história, que Pasolini se inscreve e escreve, Didi-Huberman atenta e nos convida a olhar para o desejo de ver, para certa disposição a imaginar. Lança luz a palavra sobrevivência, e ao caráter indestrutível, ele diz, das imagens em perpétua metamorfose. Finaliza o capítulo indicando que o que desapareceu em Pasolini foi a capacidade de ver aquilo que não 240 havia desparecido completamente, aquilo que aparece apesar de tudo – indicando-nos uma luz, ainda que pequena, sobre imagens sobreviventes. A escolha pelo olhar de Didi-Huberman sobre as imagens, e aqui, as imagens sobreviventes, vem ao encontro da nossa pesquisa que se esforça em encontrar um olhar aguçado, e que faça falar, a obra da escritora Hilda Hilst. Quando Hilda Hilst imaginou-se livre para fracassar foi o desaparecimento de um possível, foi uma espécie de desistência que lhe acometeu, assim como acometeu Pasolini ao crer no desaparecimento dos vagalumes na Itália. Pergunto-me, então, o que há nesses entretempos, nos silêncios de tantos anos sobre sua escrita e depois, o horror sobre o obsceno, tão caro a Hilda Hilst? Penso que, para compreender os tempos e as produções de cada época, uma imersão nos arquivos deve ser feita, mas não só. Didi-Huberman nos sugere ainda uma espécie de bifurcação, um deslocamento, quem sabe, até uma experiência de deliquescência, um acontecimento que se dá no encontro das diferenças: Há uma outra maneira de formular a pergunta, de deslocar as coisas. (...) É bifurcar de repente. Não adiar mais nada. Ir direto ao encontro das diferenças. É partir para o campo. Não que o Archivio ou a biblioteca sejam puras abstrações, não-terrenos: ao contrário, esses reservatórios de saber e civilização reúnem grande número de estratos, dos quais é possível seguir, justamente - de um arquivo a outro, de um campo de saber a outro -, os movimentos do terreno. Mas bifurcar é outra coisa: é mover-se em direção ao terreno, ir ao local, aceitar a experiência existencial das perguntas que alguém faz a si mesmo. Trata-se na verdade, de experimentar em si um deslocamento de ponto de vista: deslocar a própria posição de sujeito, a fim de poder oferecer meios para deslocar a definição do objeto. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.37) (grifos meus) 240 Que encontro é esse? De quais diferenças Didi-Huberman nos fala? Talvez a pista esteja na última frase do trecho acima, em grifo. Ao adentrar num universo de pesquisa, é preciso estar disposto a perde-se, a mover-se em direção ao terreno, e aceitar talvez, a mais inquietante tarefa que Hilda nos legou: ir ao local, aceitar a experiência existencial das perguntas que alguém faz a si mesmo. 241 XIV. ESTRATÉGIAS PARA VER A LUZ, OU FÓSFOROS, PARA ILUMINAR AOS POUCOS E em entrevista intitulada A tempestade, de 1994, feita por Paulo Martinelli, para o Correio Popular de Campinas, HH comenta: Minha temática sempre foi a busca. Meus personagens são sempre os que perguntam. Nos meu livros eróticos, que foram classificados como pornôs por alguns, os personagens tem problemas existenciais. De repente no meio de uma orgia, o sujeito está se perguntando: o que eu estou fazendo? O sexo nestes livros é para puxar o vestido do divino, é um meio para se enxergar a ínfima luz. (Arquivos CEDAE – 4b) Reconhecemos essas passagens que Hilda pontua: De repente no meio de uma orgia, o sujeito está se perguntando: o que eu estou fazendo? De fato, usando todo o novo linguajar aprimorado, estudado junto da linguagem popular a partir do dicionário de termos chulos, a queda-livre-para-fracassar de Hilda se converte numa descida ao mais baixo da língua, e é de lá, do baixo que Hilda pode começar. E se renovar, tal qual a tradição do realismo grotesco na cultura popular da Idade Média. Aqui temos um exemplo de como Hilda se utiliza de termos vulgares, “descendo moralmente”, na linguagem. Trecho abaixo, em Cartas de um Sedutor: 242 E não é que esse pulha cínico ta lançando um livro? É capaz de tudo. De dar a rodela, de meter no aro de algum editor velhusco, chupar-lhe a pica até fazê-la sangrar, sacripanta bicudo! queria porque queria ser escritor! Ponderava: Tiu, não tem essa de ascese e abstração. Escritor não é santo, negão. O negócio é inventar escroteria, tesudices, xotas na mão, os caras querem ler um troço que os faça esquecer que são mortais e estrume. (HILST, 2009, p. 138) Embora reconheça uma pergunta endereçada à literatura, que questiona, entre outras coisas, o que deve escrever um escritor no contemporâneo, para ser vendável, dando a ver as relações de mercantilização da literatura e da arte, quando fica em evidência o caráter político da trilogia, de denúncia e revolta, retomo a desconfiança que foi levantada antes sobre esse auto-sacrifício de Hilda ao escolher sacrificar a própria literatura. No livro Contos D’Escárnio/Textos Grotescos, Crasso, o personagem, “filho de uma crassa putaria”, anuncia na segunda página do romance: Bem. Resolvi escrever este livro porque ao longo da minha vida tenho lido tanto lixo que resolvi escrever o meu. Sempre sonhei em ser escritor. Mas tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei. Hoje, no entanto, todo mundo se diz escritor. E os outros que leem, também acham que os idiotas o são. É tanta bestagem em letra de forma que pensei, porque não posso escrever a minha? (HILST, 2008, p.14) Está lançada a crítica à literatura, de forma jocosa e bem humorada. São elementos da poética de Hilda que se repetem neste período. Outra vez, o narrador-escritor-caído, lançado fora da grande literatura, diante deste circo armado do mundo, diante da 243 perplexidade pessoal de Hilda, uma última cartada, um golpe de mestre. Como se a própria Hilda mimetizasse aquilo que mais a atormentou nos últimos anos: uma falta de leitores, a impossibilidade de viver do seu trabalho, a escrita literária, denunciando a idiotia e a impossibilidade de pensar neste país de bandalheiras, roubalheiras, como as causas da situação lamentável das artes em geral no Brasil. De certa forma, assumindo uma posição ativa diante de tudo aquilo que Hilda imaginava ser os empecilhos para um reconhecimento do seu trabalho sério, ela se lança entre gargalhadas e pedras na mão, ou melhor, na língua, se lança numa escritura escrachada, uma nova experiência, um novo caminho. Não apenas agora, livre para fracassar, mas talvez para fracassar melhor, sendo o agente de sua própria descida ao que ela considerava o mais baixo: a agressão, a fealdade, a violência. Será preciso rir de tudo isso e incorporar a tradição carnavalesca do riso popular através do grotesco, se incluir naquilo que Bahktin nomeou como ”escarnecer os próprios burladores”. De que maneira Hilda Hilst escarne a si mesma? Bom, ela, como escritora que decide escrever “umas coisas porcas”, cria personagens-escritores-de-coisas-porcas, como seus duplos, duplicando a trama e criando uma meta-narrativa, a realidade inserida dentro da obra, uma passagem e uma mistura entre a vida e a ficção, para chafurdar de vez nesta lama. Será aqui com a literatura dando suporte, aparecendo como um corpo possível para se habitar o mais árido do mundo? Pelo menos, uma operação é realizada pela escritora, que se duplica na obra, na tentativa de encontrar uma saída ainda para a literatura, mesmo que fosse desde um lugar de desistência e aos berros, para dar uns murros no mercado editorial, para chegar, quem sabe, a um público amplo. 244 Cristiano Diniz contou-me que ela ganhou um dicionário de termos chulos e foi, a partir dessa leitura, que recolheu palavrões populares por todo Brasil, Hilda Hilst reuniu um novo repertório e que, de algum modo, este encontro com a linguagem chula popular teria lhe dado uma nova liberdade de criação. Outra repetição que encontramos é a reflexão existencial no meio de todas as “crassas putarias”, mais um pequeno vaga-lume, a fazer furo na desistência de Hilda Hilst. Crasso, o personagem anuncia que, antes de falar da igreja, vai contar sobre o bordel a 30 km de Gota do Touro, e narra a história de Liló, a quem todos adoravam ver lamber as putas. Depois da descrição detalhada com “caceta para dentro”, “pau duro”, “grande lambida” “sendo chupada” “ejaculava na boca da outra” entre vários outros termos, vem então a igreja: E porque eu teria ido à igreja aquela manhã? Porque apesar do meu roteiro de fornicações eu também tinha momentos de tédio e vazio. E apesar de ter verdadeira ojeriza por igrejas e instituições e seitas (principalmente a igreja católica que, ao longo da história e em nome daquele deslumbrante que era Cristo, matou saqueou incendiou seres cidades e países, ah, sempre me pareceu que as ligações entre o lá de cima e o homem entraram há muito em curto-circuito, você pede pra falar com Sydney , na Austrália, e te dão Carapicuíba e quejandos. Evidentemente que O Deslumbrante não mandou recados de assassinatos e torpezas, torpe é a nossa natureza, imundo e dilacerado é o homem, imundo sou eu, Crasso, mas querem saber? Não vou falar disso não, imundos são vocês também, todos nós e se eu continuar falando nunca mais vou conseguir foder. E foder é tudo o que resta a homens e mulheres. Vamos Às fodas, senhores. Só mais um minutinho: para mim o homem foi feito pelo demo. Na história aprendi que os cátaros, os albigenses, que naturalmente vocês não sabem quem são e devem procurar saber, também pensavam assim, isto é, que o mundo foi criado pelo 245 demo. Muito mais lógico não? Dá para entender tudo melhor. Pois os católicos queimaram os cátaros no século XII (favor se informar). Eram gente de primeiríssima, esses cátaros. Eram chamados Os Perfeitos. Paremos por aqui, a coisa tende a se estender. Outra coisa: a igreja não é boba não. Já manjou que mais dia menos dia acontece uma grande cagada, e agora tenta salvar a pele com sutilezas canônicas. Por que não se desfazem de toda aquela tralha de ouro, prata e pedras preciosas que há lá no palácio deles? Por que não dão as montanhas de terra ou vendem as montanhas de terra e propriedades e dão dinheiro aos famintos? Porque os papas, ao invés de discursos lengalenga, não arrancam as vestes, não pulam daquela cadeirinha, não ficam nus e nus não discursam um texto veemente, apaixonado e colérico amaldiçoando os canalhas? Não adianta ficar voando de ceca em meca e beijando o chão. Não deviam postar-se nus numa praça e ali permanecer até que os homens entendessem que é preciso acabar com todas as cloacas do poder? Mas vamos às nossas orgiásticas, gentis e menos imundas putarias. Outra coisa: não sou ingênuo não. Sei muito bem o que vão me responder e desde já respondo: não aceito. Ó gente, não consigo parar. Parei). entrei na igreja, sentei-me num dos bancos vazios e comecei a pensar no pau e na vida. O que era isso de ter um pau e ficar metendo nos buracos? (HILST, 2008, p.29-31) Que coisa séria, a santa levantou a saia, mas a seriedade está ali à espreita, e se infiltra por meio do discurso: “porque não dão dinheiro aos famintos?” E acrescenta: O que era isso de ter um pau e ficar metendo em buracos? 246 Minha hipótese então é de que algo ali sobrevive, apesar de tudo. Uma imagem retorna, e vem dizer da sobrevivência de uma forma. A essa Nachleben, sobrevivência, nomeada por Didi-Huberman a partir de Aby Warburg encontrei uma passagem que considero uma imagem vagalume que resiste: 247 DA OBSCENIDADE I Com será isso de não se permitir mais lembranças, nem abraços, nem coitos. Como será isso de morrer antes de estar morto? (HILST, 2009, p.125). 248 A imagem: aparição única, preciosa, é apesar de tudo, muito pouca coisa, coisa que queima, coisa que cai. (...) Como um vaga-lume, ela acaba por desaparecer de nossa vista e ir para um lugar onde será, talvez, percebida por outra pessoa, em outro lugar, lá, onde sua sobrevivência poderá ser observada ainda. Se, de acordo com a hipótese que tentamos construir, a partir de Warburg e Benjamin, a imagem é um operador temporal de sobrevivências – portadora, a esse título, de uma potência política relativa a nosso passado como à nossa “atualidade integral”, logo, a nosso futuro -, é preciso então dedicar-se a melhor compreender seu movimento de queda em nossa direção. (Didi-Huberman, 2011, p.118 e 119) Talvez aqui eu confirme minha hipótese de pesquisa, de que, uma das grandes funções que pode ter sido a escolha pela escrita pornográfica, para Hilda Hilst, tenha sido uma função de esperança. Foi encontrar uma maneira de continuar perguntando, de continuar buscando, dessa vez, com maior ênfase, e com uma grande esperança de finalmente se comunicar com o outro, o leitor. O desejo intenso de Hilda Hilst de mudar o coração do homem encontrou na escrita erótica e/ou pornográfica uma forma de fazer sobreviver esse desejo, difícil de sustentar, quando fundamentalmente, não há leitores. Em entrevista, em 1988, ao ser confrontada com a questão: Como é que você se define? Hilda responde: 249 Outro dia eu estava lendo sobre as narrativas japonesas e encontrei a palavra MONOGATARI, que quer dizer, em japonês, romance, conto lendário, e resolvi decompô-la. Ela tem mono, gata, rata, gamo, ata, ira e gnomo. Quando eu li isso veio a pergunta: o que é um escritor? A partir dessa composição eu intui que o escritor, o intelectual, é um gnomo – pequena criatura grotesca, o homem, um gnomo com ira – porque segue em ansiedade, carregando a ata, o texto, o discurso, e atrás dele o mono, a gata, a rata e o gamo. Então o intelectual no mundo de hoje seria um monogatari, eu sou um monogatari, eu sou aquela pessoa grotesca, querendo passar o meu texto ao mundo com certa ira, com uma certa ansiedade, e todo mundo pondo a corrente: a gata, a rata, o gamo, o mono, num país em que o escritor está totalmente desamparado. (Arquivos CEDAE – 4a) 250 X. “TU QUE ME VÊS/GUARDA EM MIM O OLHAR” Sabe Hilda, que terminar é tão ou mais difícil do que começar. Escolhi para título de fim, uma frase que está na sua série de poemas Mula de Deus, e que leio pela primeira vez, tão tardio, no fim de seu último livro Estar sendo/Ter sido (1997). Livro que iniciei duas ou três vezes a leitura e não pude avançar. Faltou corpo, barrado sempre na mesma página, a trinta e dois, e deixei de lado p or um tempo. Abri ele hoje como um jeito de burlar o fim. Começo terminar com ele, porque ainda não lido, guarda nele este gesto de espera, e de futuro. Dele, do livro, tenho a edição original da Nankin Editorial, que comprei em Campinas, junto com a edição original de Cascos e Carícias e mais o volume n.8 do Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles – Hilda Hilst. Sintome privilegiada de ter esses livros nas edições originais. Coisa rara. Embora Cascos e carícias nesse momento96, junto com minha cópia de O caderno rosa de Lori Lamby, atravesse o oceano vindo lá de Paris, minha última caixa de livros, perdida, localizada e finalmente reenviada pela minha antiga proprietária. Já são 5 meses de espera, mas isso é outra história. Estive em Campinas, em novembro de 2001, única representante do movimento estudantil da minha universidade (Unisinos/São Leopoldo/RS) que embarcou num ônibus fretado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e seus respectivos representantes do movimento estudantil para participar do I Encontro Nacional de Universitários – A Terra e um Projeto para o Brasil. Foi uma tentativa do MST de se aproximar da juventude em formação acadêmica naquele momento no país. Foi lá, nesse ido 96 16 de março de 2015. 251 em novembro de 2001, aos 19 anos, quando achei seus livros para comprar pela primeira vez. Até hoje não compreendo por que motivo não surgiu em mim a possibilidade de ir visita-la. Eu era uma jovem que sonhava a revolução e você ainda estava viva. Mas, já estive duas vezes na Casa do Sol, e três vezes visitando seus arquivos na Unicamp. Até encontrei um relato guardado, diferente daquele que escrevi na dissertação, este está cru. Visitei a sua memória, também era novembro, mas dessa vez, era 2009, e eu tinha 27 anos: O Silêncio. Estive na casa do Sol. Fui recebida pelos cães. Assustei de prontidão. Depois passei a tarde acarinhando, recebendo lambidas, rosnados, pedidos de atenção. Narjara, a jovem e disposta mulher. Olga, a que ficou dos últimos amigos. Perdeu o marido/companheiro e melhor amigo de Hilda Hilst, José Luiz Mora Fuentes há cinco meses. Perdeu a amiga há cinco anos. Conversa, conta coisas, está um pouco cabisbaixa? Não. Não sei definir. Acolheu-me. Narjara mostra a casa, aqui o escritório, aqui a mesa onde ela escrevia, aqui os livros, muitos roubados... Roubados? Ah, pessoas que vinham aqui e levavam, até cinco livros, às vezes. Tinha uma mesa comprida aqui, está na outra sala, Olga está usando. É que moramos aqui... Mostra o banheiro que HH usava, igual, desde que a casa foi construída em 66. E as cores são as mesmas? Sim, principalmente as cores. Azul escuro no teto, uma banheira 252 de louça branca, daquelas presas no cimento. Lindo o banheiro. O antigo quarto de Hilda transformado em biblioteca. Muitos livros. Narjara me mostra todas as primeiras edições, as capas. Mora Fuentes fez as capas de muitos livros. Chego lá, escuto, converso, sou escutada... bebo cerveja. Hilda se foi, mas ainda está lá. José Luiz, das cartas 97, agora Mora Fuentes, escritor, amigo-irmão, Casa do Sol. Recém-partido. Ainda há dor. As coisas acontecem num tempo que é outro. Cheguei à Hilda através da leitura de Caio Fernando Abreu. Ele também morou na Casa do Sol. É uma casa de histórias, personagens vivas, invenção de muito VIVER. Tenho a impressão que a casa conta uma história que se mistura na vida de HH. Casa construída para escrever. ... Naquele tempo, Hilda, de 2001, era mesmo quase impossível encontrar um livro seu para comprar. Você andou muito triste e um pouco derrotada por um período, “Falar o que?” Você lembra? Dizia que não havia mais nada a dizer.98 Quero te contar que neste exato momento está acontecendo uma exposição em São Paulo – Ocupação Hilda Hilst99, no Itaú Cultural, até ganhei o catálogo de 97 98 99 Que eu lera pela manhã nos arquivos. FARIA, Álvaro A. Hilda Hilst, o silêncio estrondoso. In: Caros Amigos, São Paulo: Casa Amarela, dez. de 1998. Ocupação Hilda Hilst. 28 de fevereiro a 21 de abril. Itaú Cultural, São Paulo, 2015. 253 presente e, assim que eu terminar essa escrita, vou lá ver. Tem também gente escrevendo roteiro de filme100 para contarem um pouco da sua história na tela do cinema. Desde que a editora Globo reeditou sua obra é possível encontrar seus livros à venda. E sua Casa do Sol se tornou um Centro Cultural – Instituto Hilda Hilst – Centro de Estudos Casa do Sol, de pesquisas, e tem até mesmo uma residência artística lá. Muitos projetos fazem viver a sua obra. Você sempre soube do alto valor da sua literatura e talvez por isso, imagino, te custava tanto a falta de leitores. Você nunca duvidou da qualidade do seu trabalho, e penso eu, Hilda, que em alguma medida você sempre vai ser um pouco enigmática, mas o seu trabalho tem uma força muito especial, que é a de fazer marca, de tocar sim, a mente e o coração do homem, como você buscava. Quero te contar também que foi identificada com a sua obra, completamente capturada pela Obscena Senhora D que iniciei meus projetos de pesquisa na psicologia, e que, sensibilizada por suas queixas, eu queria dar mais um lugar de escuta para você. Aprendi muitas coisas nesse percurso, sobre você e a sua obra, sobre seu estilo de escrita, sobre sua vida. E o que mais admiro em você, Hilda, é você ter, sempre ter tido, coragem de ser uma livre-pensadora, através da poesia, da escrita. Por, antes de ser mulher, você ser escritora, e por você implodir toda e qualquer questão de gênero. Queria dizer ainda, que, embora você não percebesse em determinado período, foi com a força da sua escrita que você foi deixando uma marca na cultura e você fez um nome-corpo, Hilda Hilst, e ele está gravado, é gravado todos os dias com novos e velhos leitores seus. E o seu texto Hilda, como você dizia: “já escrevi coisas deslumbrantes, (...) tem pouca gente que pensa e escreve como eu. Eu sempre digo isso e aí sou considerada megalômana. Mas eu sei quem sou” (HILST, 1999, p.33). “Cineasta Gabriela Greeb, que pesquisa há mais de cinco anos a vida e a obra da escritora para o documentário Contato, Hilda Hilst pede contato, com previsão de lançamento para setembro deste ano.” GONÇALO, Junior; LEMOS, Fernando. Nunca houve uma mulher como Hilda. In: Revista Brasileiros, número 78, jan. de 2014, p. 40-45. 100 254 Você sempre reconheceu a qualidade do seu trabalho: No dia 22 de junho de 1973, uma sexta-feira, Hilda Hilst acordou com o olho direito inchado. Na tarde de quinta-feira ela havia recebido um exemplar do seu livro Qadós – que seria lançado 11 dias depois – e passara a madrugada lendo o material enfim editado e impresso. "Estou tão contente com meu Qadós’, escreveu ela no seu diário. ‘Estou envaidecida e peço perdão aos guias, mas não conheço texto algum tão vigoroso e belo como o meu. Perdão guias. Fui apenas instrumento, mas que enorme emoção” (HILST, 2015, p.3). Essa alegria, Hilda, de reconhecer a própria raridade na escrita, e que fez você tomar como amigos Beckett, Joyce, Wittgenstein, Bataille, Kierkegaard, Catulo, Kazantzakis... e tantos outros... Essa alegria, ela é só sua, Hilda, é uma alegria que você conquistou quando tomou a decisão difícil de dedicar a vida toda à sua literatura: “Foi aos 30 anos, depois de ter lido Kazantzakis. Um dia, ele estava em Paris e viu uma puta linda. Combinou com a prostituta de sair. Quando estava fazendo a barba para o encontro, nasceram pústulas na cara dele e Kazantzakis acabou não indo. Achou que era um milagre, deve ter sido um milagre mesmo. Aí ele foi para o Monte Athos escrever. (...) Quando li esse livro, Cartas a El Greco, resolvi mudar para cá. Resolvi mudar de vida. Eu tinha uma casa gostosíssima em São Paulo, todo mundo ia lá comer, namorar, dançar – meus namorados, meus amigos, minhas amigas. Aí, li o livro e mudei minha vida” (HILST, 1999, p.30-31). Queria te contar ainda uma última coisa, que guardei. Foi a última pergunta que fiz a sua amiga Olga Bilenki, em novembro de 2009, depois de passar a tarde inteira com ela e Narjara. O dia começava a se despedir, e num espaço de entre luz, da tarde que finda e da noite que chega, com um tom muito baixo, quase sem voz, perguntei a ela dessas suas queixas e da sua tristeza, noticiadas em dezembro de 1998, pela revista Caros Amigos, com um tom tão agudo que somente um poeta, o poeta paulista Álvaro Alves de Faria, conseguiu atingir e transmitir a partir de sua entrevista “Hilda Hilst, o silêncio estrondoso”, quando ainda não havia livros seus nas prateleiras 255 das livrarias e logo, quase não havia leitores, e quando também havia pouco dinheiro, já faziam uma porção de anos. Comentei com Olga dessas suas queixas e perguntei a ela sobre como você se sentia em relação a isso antes de partir daqui, desse mundo. Então Olga me disse que você ganhou um importante prêmio literário em 2002 101, de poesia, e o que, então, você disse a ela foi que, finalmente, haviam reconhecido o seu trabalho. Eu li hoje, dia 25 de março de 2015, uma matéria linda que escreveram sobre você, num formato de carta como esse que ensaio aqui, a matéria se chama Estimada Senhora H, escrita por Carol Almeida, e foi publicada neste mês de março pela Revista Pernambuco102 – Suplemento Cultural do diário Oficial do Estado: ...estamos em abril de 2015 e você, Hilda, é um sucesso editorial. Como diria Olga: “Os leitores já não têm mais medo”. Nas redes sociais, que é como as pessoas se comunicam hoje sem precisar de qualquer contato presencial (você não teria paciência), sua popularidade só sucede à de Clarice e Caio. Avise a ele disso. Aliás, melhor não, transformaram tudo dele (e de Clarice também) em frases escritas em itálico, fundo cor de rosa, compartilhadas como mensagens de autoajuda, o horror. Você, no entanto, carrega ainda o fascínio do inatingível. E eis então que toda aquela “vitimologia” que soube construir “com esmero, acuidade, pertinácia ao longo da vida, vai fenecendo como lebre arredia, famélica e assustada”. As missivas lhe chamando de “louca, velha lunática, pinguça, porca” deram lugar a cânticos de louvor pelo mistério quase bíblico de 101 Paulista dos Críticos de Arte (APCA), 2002. Disponível em: Acesso em 25/05/2015. 102 Pernambuco, Edição Nº 109 - Março/2015. Disponível em: Acesso em 25/05/2015. Prêmio Moinho Santista Poesia (Fundação Bunge), 2002. E Grande Prêmio da Crítica para Reedição das Obras Completas (Editora Globo) – Associação 256 sua obra, expostos agora em uma geração de leitores que, lunática ela própria (e talvez menos cínica), parece te entender melhor. Será? Temo, por um lado, que estejam te lendo distraidamente, primeiro porque vivemos um momento de negligência do esforço de pensar, nosso déficit de atenção está se tornando uma questão de saúde pública. E segundo porque você se sabe de difícil penetração, disposta a se entregar somente para leituras já lubrificadas pela autoconsciência. (...) A mostra se chama Ocupação Hilda Hilst. Te ocupam, senhora H. Te habitam, te haurem, te harmonizam com vinho tinto. “Josete entendia de vinhos como se tivesse nascido embaixo duma parreira de Avignon”. Hoje é você quem coleciona Josetes, especialistas e fãs. Já se imaginou com fãs? Daniel me fala que, de 2013 pra 2014, as vendas de seus livros aumentaram a nada modesta porcentagem de 100%. E de 2014 para o começo de 2015, mais 70%. No entanto, não há motivos para desassossego: continua a ser maldita, mesmo que uma maldita amansada à luz do desejo de compreensão. Chegamos ao fim, a uma espécie de fim, e nele, me veio de repente, uma vontade de te unir ao teu pai, esse teu mentor da escrita, essa figura que buscastes através das letras, Hilda, a vida toda. “Quase todo meu trabalho está ligado a ele porque eu quis. Eu pude fazer toda a minha obra através dele. Meu pai ficou louco, a obra dele acabou. E eu tentei fazer uma obra muito boa para que ele pudesse ter orgulho de mim [a voz embarga nas últimas palavras]. Eu estou ficando rouca, não é nada... Então, eu me esforcei muito, trabalhei muito porque eu escrevia basicamente para ele. (...) Meu pai foi a razão de ter me tornado escritora” (HILST, 1999, p.26). Eu não conheço as imagens do porvir, e não encontro palavra alguma que eu pudesse dizer agora... Então, silencio, escolho o silêncio. E te escuto, Hilda: 257 Respiro e persigo Uma luz de outras vidas. E ainda que as janelas se fechem, meu pai É certo que amanhece. (HILST, 2001a, p.5) A perfeição é a morte A perfeição é a morte. Não será isso a mais dolorosa certeza da nossa imortalidade? (Apolonio de Almeida Prado Hilst) Para poder morrer Guardo insultos e agulhas Entre as sedas do luto. 258 Para poder morrer Desarmo as armadilhas Me estendo entre as paredes Derruídas. Para poder morrer Visto as cambrais E apascento os olhos Para novas vidas. Para poder morrer apetecida Me cubro de promessas da memória. Porque assim é preciso Para que tu vivas. (HILST, 2001a, p.15) 259 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor. Mínima Morália – Reflexões a partir da vida danificada. São Paulo: Editora Ática, 1993. . “Ensaio como forma”. In: ADORNO, Theodor. Notas de Literatura I – Coleção Espírito Crítico. Duas Cidades/ Editora 34: São Paulo, 2012. AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. . “O autor como gesto”. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2010. . O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Editora Argos, 2009. ANÔNIMO séc. XVIII. 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H H – Da dispersão à suspensão (2011) Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 17 de julho de 2014 Hilst, Hilda. Entrevista TV Cultura. Entrevista concedida em 1990, por ocasião do lançamento de "O caderno Rosa de Lori Lambi" 13/07/2014 Fuentes, J.L. “Hilda Hilst” Diverso. Minas Gerais, 05/07/2009. Entrevista concedida Rede Minas dia 16 de julho de 2014 (Parte I) (Parte II) (Parte III) (Parte IV) 269 LIMA, Manoel Ricardo. Joaquim Cardoso: um encontro com o deserto . Tese de doutoramento apresentada por Manoel Ricardo de Lima ao curso de Pós-Graduação em Literatura, linha de pesquisa Textualidades Contemporâneas, área de concentração em Teoria obtenção do título de Doutor em Letras (2008). 13/07/2014 Literária, Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, sob orientação da Profª Drª Maria Lúcia de Barros Camargo, para a Rosa Luxemburgo15 de julho de 2014 Simone Weil15 julho de 2014 Filmografia Programa de TV Apostrophes (Entrevista a Marguerite Duras, 1984) - https://www.youtube.com/watch?v=IVqxmOHmKZo, acessado em 24/03/2015. Wittgenstein (1993). Direção: Derek Jarman. Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, 75minutos. Arquivos CEDAE 1. Série A Obscena Senhora D (1982) – pastas 39 e 40. Constam duas versões datiloscritas do livro e sete fragmentos manuscritos e datiloscritos; anotações de leitura e esboços; cartas sobre o livro e sobre as adaptações para o teatro; uma dissertação de mestrado sobre o mesmo; fotos da estréia da adaptação teatral da obra (1993) com a presença titular; artigos sobre o livro e sobre adaptações teatrais do mesmo; documentos sobre a 270 tradução do livro para o francês e constam ainda textos datiloscritos das adaptações teatrias. A série está subdividida em 4 subséries: cartas, artigos de jornal, documentos sobre publicação e adaptação teatral. (grifos nossos) 2. Caderno 1995-1999. 3. Caixa Agendas – agenda de 1993. 4. Pasta 53- O caderno rosa de Lori Lamby a)Entrevista publicada no Diário do Povo, um jornal de Campinas em 27 de março de 1988. b)Entrevista intitulada “A tempestade” de 1994, feita por Paulo Martinelli, para o Correio Popular de Campinas, pasta 53. 271